Macacos Que Somos

A revolta como virtude política


Desarticulação: eis um dos maiores perigos para a democracia. Confundir entre si desejo, necessidade e vontade; povo e maioria; manifestação e juízo; sensacionalismo e evidência; denuncismo e comprovação; engajamento e indignação; liberdade de expressão e inconsequência. Todos esses conceitos poderiam ser melhor trabalhados com sobriedade e abertura para a diversidade de perspectivas, mas é precisamente essa possibilidade o que estamos minando ultimamente… O resultado? Dói até imaginar…

“Olocracia”. Descobri esse termo outro dia: é o governo das massas, das multidões. Diferentemente da Democracia, em que, pelo entendimento moderno, se governa em nome dos interesses do povo, neste modelo (não um “sistema”) a título de atender os desígnios da massa empoderada pode-se inclusive contrariar os maiores interesses do povo. Pois bem: conseguimos converter nossa ainda jovem democracia em uma olocracia progressiva. E não nos enganemos: se na Grécia Antiga, de onde se originou o termo (e o sistema democrático), essa forma de poder era pontual e flutuante, estabelecida pela reunião física de muitas pessoas, nos tempos atuais, com todo o aparato da comunicação de massas, ela é perenizada: não é preciso desmobilizar-se do coletivo, interromper a presença política para procurar o que comer e satisfazer outras necessidades fisiológicas. Ao contrário: na vida industrial e moderna é possível fazer tudo isso e ainda assistir o “telessangue” do meio dia e o telejornal da noite, além da telenovela. É possível ter notícias na sala de espera do dentista, nas mídias remotas de elevador ou do ônibus, no celular. É possível tomar banho e dirigir ouvindo rádio. A multidão existe potencialmente, enquanto público, e se estabelece efetivamente quando esse público adota um discurso comum, inarticulado internamente mas ostensivo no conjunto e na aparência. Até aí, nem mesmo é preciso que se reúnam fisicamente!

A raiva e a intolerância que não se intimidam com os reiterados flagras de sua hipocrisia ignorante constituem a marca mais bem acabada do curso de empoderamento desse modelo: pensar já se torna secundário ao agir, e quem pensa ou faz autocrítica antes de agir é qualquer coisa de nada lisonjeiro entre “otário” e “mau caráter”, em uma inversão total de perspectivas. Isso tudo lembra muito nosso país hoje, não!? A psicologia das massas e das multidões é objeto de atenção especial dos teóricos da comunicação e da sociologia já faz quase dois séculos. E de sua origem pra cá, essa preocupação testemunhou a ascensão de regimes totalitários com a mesmíssima base olocrática, ou seja, não foi preciso sequer que o Ocidente carecesse de instrumento teórico que reconhecesse essa situação para que, em plena Modernidade, deixasse de reproduzir suas condições até com mais virulência e profundidade – e vemos isso atingir o Brasil, agora, ao nível do corpo a corpo…

Tente conversar com uma multidão. É difícil, especialmente se você não estiver “ao lado dela”, acatando integral e performaticamente o que ela defende. Agora tente articular um pensamento divergente ao discurso da multidão… fazê-lo sem problemas é, virtualmente, quase impossível de tão improvável, e concretamente quase invariavelmente inconsequente consigo mesmo, a ponto de se correr risco de morte. Literalmente. Exagero? Lembremos dos múltiplos episódios de linchamentos recentes, os justiçamentos; lembremos de Fabiane Maria de Jesus, uma mãe de três filhos sumariamente julgada e assassinada por uma turba de anônimos no litoral paulista. Agora as hordas se movimentam por ímpeto institucional e político-partidário, ainda que pela afirmação negativa do “contra tudo isso que está aí”, pois isso que está aí está quase necessariamente particularizado em um partido específico ou contra a democracia como um todo. Se reúne por isso e vai às ruas. A grave escalada de ânimos que corre em meio a esses protestos independente da vontade de uma proporção considerável de seus partícipes dá seus sinais quando vemos “bonecos de judas” enforcados em um viaduto, portando máscaras de Dilma e Lula. Ou quando em um protesto uma multidão aos brados bate à porta de uma família, mandando-a tomar naquele lugar, corporificando-a como a legenda “PT” em razão de uma faixa com dizeres a respeito de outro momento político! Que chance têm as pessoas de se defenderem contra a multidão? Os covardes e alucinados que afrontaram moral e fisicamente aquela família sabe onde eles moram, e recairá sobre ela o ônus de se mudar dali se quiser minimizar os riscos de serem agredidos em novas manifestações – ou por um lunático revoltado que vá dar em sua casa num dia qualquer… será isso razoável, defensável? E esses são apenas alguns de muitos casos!

Língua ferina: desistimos do diálogo?

Para este público há algo de metafisicamente valioso em repetir que “todos os políticos são corruptos” e reiterar que não há espaço para “relativizações”, para “articulação”; “é tudo preto no branco!”. Não por acaso o público nessas manifestações se divide em inúmeras soluções contraditórias que nunca se processam, nunca se enfrentam, provavelmente porque não é algo propositivo o que importa, mesmo; e com isso deixam o tira-teima para o momento posterior às conquistas. Existe, pois, nessas manifestações uma suposta pluralidade subjacente que, no entanto, não se comprova como tal porque nunca se põe inteiramente à prova – e qualquer rastro de diversidade que pudesse resistir a essa análise acaba anulada pelos próprios manifestantes para dar corpo àquilo que os une. Por que, afinal, não se dividem? Por que o libertário está junto do requerente da intervenção militar? Por que não deixam claro essa diferença abissal em diferentes manifestações para chamarem de suas? Parece-me óbvio que a principal desculpa consciente seria, ora, que é preciso “mostrar que todos aqui somos contra tudo isso que está aí”… mas valerá tanto mais à pena correr o risco de cair na contradição do que defender o que supostamente é o certo? Não será essa postura desprecavida indício de que a prioridade é estritamente emocional e imediata em vez de racional e articulada para o longo prazo? Daí, desta covardia intelectual travestida de coragem e ação, surge a homogeneidade efetiva em torno da indignação como virtude política; e se fecha não só a definição própria de multidão atualizada para os tempos modernos, mas o protótipo da autocracia galopante.

Afeita a truísmos e caricaturas, cujo poder de comunicação é imediato e muito forte, a olocracia é, independente de assentir conscientemente com impeachments ou golpes, a antessala para a tirania, que se baseia nas mais banais fantasias. Essa massa anda sequiosa de um redentor, senão contribuindo intencionalmente para isso, mas ativa e concretamente, uma vez que aplainam as condições para que um indivíduo ou grupo de poucos indivíduos, oportunistas e teatralmente competentes (mas não administrativamente) tome o poder com um signo da moralização movimento a que se chama “bonapartismo”. Sabe-se disso desde que Homero fundamentou a monarquia com um eloquente “uma multidão de legisladores (ou o governo de muitos) não pode ser bom; que haja, pois, um só legislador, um soberano” quase 3 mil anos atrás. A mensagem continua forte ainda hoje, e seu sub-texto também. É por essas e outras que muita gente inteligente e bem intencionada não consegue processar as críticas que se faz ao movimento, se atendo à discussão invariavelmente seletiva de termos e expressões como “elite branca” e “classe média” – preferindo tornar maniqueísta a abordagem dessas questões (que pode muito bem ser tomada de maneira mais ampla e diversa, é ao que se propõe muitas vezes) mesmo quando os termos são usados por jornalistas e analistas em veículos internacionais! Não adianta achar que os idealismos morais bastam; ora, os regimes totalitários todos surgiram com excelentes intenções, e as populações colaboraram decisivamente para que se instalassem, estivessem ou não de acordo com os meios que depois viriam a ser empregados para “levantar a nação”, “moralizá-la”, “restaurá-la”… essas pessoas compuseram o ninho dessas cobras no momento mais oportuno e com exatamente aquilo que precisavam – força, visibilidade, corpo, voz – porque decidiram se deixar levar pela empolgação, por decidirem agir sem pensar muito, por encontrarem um inimigo em comum.

Em suma, estamos desistindo do diálogo, e essa é a forma mais eficiente de desarticular a democracia que se conquistou nesse país de maneira tão custosa. Um protesto por si só é, em tese, um exercício plenamente democrático – mas uma coisa é o panelaço das madres y abuelitas da Praça de Maio, que se originou da necessidade delas serem ouvidas; outra é a versão brasileira, que só existe para que seus manifestantes não ouçam, pois se dá tão logo qualquer figura do governo apareça para falar em público. É sintomático que quem faz isso o faz com orgulho; e não há mais pudor da mídia em mostrar que esse tipo de protesto predomina em áreas nobres das capitais brasileiras… quando observo isso, não estou contra a abstração que é o direito democrático de protestar contra a democracia. Estou contra o efetivo que se concretiza, contra o conteúdo (se é que tem) e principalmente contra a forma! Acreditar que dispor de bile em um discurso irrefletido pelo conserto mágico do país é o melhor para todos nós redunda, na verdade, em jogar por um gol contra. Senão for isso, como quem defende uma moralização e se diz “cidadão de bem” pela “moral e bons costumes” pode mandar alguém “tomar no …”? Como podem com consciência limpa ensinar crianças da mais tenra idade a odiar – chutando, queimando e achincalhando a bandeira de um partido em praça pública? Como podem agredir verbal e até fisicamente em grupo um só indivíduo porque este vestia uma camisa vermelha que fazia graça com as figuras (sim, satirizava a “esquerda festiva”!) de Marx, Engels, Lenin; ou outro com camisa vermelha do seriado americano Friends (tem coisa mais capitalista?) no metrô? Como podem pedir para que se limpe o país da corrupção ostentando uma camisa com o escudo da CBF no peito? E denunciar “o saqueamento do país” e ainda contemporizar com o furto de 127 produtos de uma padaria gourmet em Fortaleza?

Antes de sequer entrar no mérito moral dessas questões (que tende a se coalhar de moralismos e recusas), a contradição, a hipocrisia e a demagogia desses e tantos outros casos são dados evidentes, obscenos, irrevogáveis – e quem se contenta com isso em si mesmo ou naquele que protesta ao lado, como tem acontecido ultimamente no Brasil, não age com civilidade, mas quase que inteiramente a despeito dela. E isso se dá inclusive (ou preponderantemente) por meio da imprensa dominante, que entra numa espiral de silêncio não divulgando aquilo que não convém a seus interesses imediatos – afinal, quantos dessa “grande imprensa” noticiou os ocorridos nos links ao fim deste texto? Como comprova o aterrador vídeo do protesto que chega à porta da casa daquela família (em link abaixo), é extraordinária a dominância cognitiva que as classes mais privilegiadas têm sobre grande parcela da população, que branca ou negra, classe média ou baixa, basta sentir-se associado ao interesse ou ao discurso da elite para, de uma forma ou de outra, agir da mesmíssima forma, senão por eles – gerando os efeitos desejados e bem concretos… sendo assim, a intempestividade dos indignados está impedindo que as críticas ao governo mais necessárias e verdadeiramente úteis sejam expostas; e isso, se derrubar o governo, será indecentemente favorável ao(s) próximo(s) governante(s). Há muitos indícios apontando para este momento como decisivo: quem deseja o bem de todos precisa priorizar desde já a reflexão e a autocrítica em relação ao mero protesto. É preciso restabelecer o sentido da sobriedade democrática e o diálogo. Caso contrário, será difícil adivinhar quando não seria tarde demais!

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Alguns links:

Rafael Esteves: Uma camiseta vermelha do Friends e a turba direitista

Padaria de Fortaleza sofre furto de 127 produtos durante manifestação contra corrupção

Família de ocupação hostilizada na manifestação 15/03 (vídeo)

Em ato contra governo, manifestantes divergem sobre impeachment (vídeo)

15 de Março: “Temos que acabar com os partidos de esquerda” (vídeo)


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Sávio Mota

Cearense de cabeça pontuda, dizem que é jornalista e rebento da tal geração Y. Cético desde sempre e corinthiano desde que é gente, gosta de ciências e futebol, cinema e documentários de tevê - além de ser apaixonado por História e por Evolução. É CODA. Tem um pequeno canal no Youtube, "O Mundo Paralelo de Neander". Wanna be a scientist. Normal não é.

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7 respostas

  1. Robson Borba Robson Borba disse:

    Ótimo texto, eu sempre reafirmo. Não há nada de errado ser contra partido x ou y, ter sua ideologia política pessoal. Mas ter um ódio anencéfalo é muito mais prejudicial. Tenho na minha vida pessoal gente que vive bradando separatismo, prejulgando nordestinos e pobres etc (Inclusive eu já fui assim, pura educação de convívio) e foram pra rua protestar por um Brasil melhor domingo passado.

    Eu não tenho papas na língua com quem eu conheço, eu pergunto qual é a moral que alguém com um pensamento raso desses sobres os outros tem pra pedir um Brasil melhor? Acho que desde as eleições do ano passado uns 12 ficaram de mal comigo, não conversam nem puxam assunto mais. kkkkkkkkkk (E digo mais, não fazem falta alguma)

    • Sávio Mota disse:

      Obrigado pelo elogio, Robson! Acho que realmente ninguém deve ser obrigado a conviver como amigo de pessoas que agem assim. Cada um de nós tem um limite de tolerância; um limiar ético e cognitivo do qual não é possível (ou mesmo não queremos) arredar pé. Nesse sentido, acho saudável termos noção e consciência de que não dá para esperar que todo o mundo se conserte às custas de nossa própria existência…

      Minha preocupação, entretanto, é que as pessoas do outro lado dessa margem acreditam que vivem a mesmíssima coisa: para elas, não é preciso nem tolerável viver com nordestinos, negros, gays ou pessoas com determinada orientação política ou religiosa, por exemplo. Se o contato com eles não faz falta, de certa forma você está mesmo afirmando uma diferença crucial com eles… mas nem se trata de uma diferença tão abissal – afinal, nós também reproduzimos muitos preconceitos (e provavelmente, quase certamente, continuo reproduzindo alguns, embora lutemos contra isso)…

      Daí, o problema que indago é: em quê nossas perspectivas diferem das deles!? Em quê não estaríamos sendo tão sectários e refratários quanto esses?

      Creio que a TOLERÂNCIA AO DIFERENTE é uma de muitas resposta possíveis em um grande mosaico de respostas… posto da forma como você colocou, fica muito claro para mim que seus desafetos do momento é que foram intolerantes, não aguentando as críticas. É essa relutância tão comum em pensar, em assumir as falhas, em discutir que vem compondo o quadro PÚBLICO (antes mesmo de político) que vivemos hoje…

      Abraço! E muito obrigado também pelo comentário!

  2. Sávio Mota disse:

    Obrigado pelo elogio, Robson! Acho que realmente ninguém deve ser obrigado a conviver como amigo de pessoas que agem assim. Cada um de nós tem um limite de tolerância; um limiar ético e cognitivo do qual não é possível (ou mesmo não queremos) arredar pé. Nesse sentido, acho saudável termos noção e consciência de que não dá para esperar que todo o mundo se conserte às custas de nossa própria existência…

    Minha preocupação, entretanto, é que as pessoas do outro lado dessa margem acreditam que vivem a mesmíssima coisa: para elas, não é preciso nem tolerável viver com nordestinos, negros, gays ou pessoas com determinada orientação política ou religiosa, por exemplo. Se o contato com eles não faz falta, de certa forma você está mesmo afirmando uma diferença crucial com eles… mas nem se trata de uma diferença tão abissal – afinal, nós também reproduzimos muitos preconceitos (e provavelmente, quase certamente, continuo reproduzindo alguns, embora lutemos contra isso)…

    Daí, o problema que indago é: em quê nossas perspectivas diferem das deles!? Em quê não estaríamos sendo tão sectários e refratários quanto esses?

    Creio que a TOLERÂNCIA AO DIFERENTE é uma de muitas resposta possíveis em um grande mosaico de respostas… posto da forma como você colocou, fica muito claro para mim que seus desafetos do momento é que foram intolerantes, não aguentando as críticas. É essa relutância tão comum em pensar, em assumir as falhas, em discutir que vem compondo o quadro PÚBLICO (antes mesmo de político) que vivemos hoje…

    Abraço! E muito obrigado também pelo comentário!

  3. Este texto, e o mais recente vídeo do canal Eu, ciência, fazem um bom contra ponto ao discurso do líder do movimento Vem Pra Rua, que participou ontem do programa Roda Viva da TV Cultura. Parabéns Papo de Primata por abrir este espaço a ponderação e a lucidez.

    • Sávio Mota disse:

      Obrigado pelo comentário, Enio; e por trazer as indicações do vídeo do Eu, Ciência e do Roda Viva!

      Aliás, devo salientar, a despeito de minhas divergências de interpretação e posicionamento políticos a um e com a linha editorial ao outro, que são um canal e um programa de TV muito bons não só para compreender esse debate (até porque o canal do YouTube tem outra ênfase)… é valioso assisti-los mesmo que seja por OPOSIÇÃO CRÍTICA à ação de seus promotores (especialmente no caso do Augusto Nunes e do Mário Sérgio Conti, no Roda Viva).

      Com esforço crítico reiterado (caso que vejo no Yuri neste vídeo, por exemplo), mesmo com faltas e percalços, sempre podemos ir mais longe do que sendo passivo receptor de conteúdos…

  4. Gileno Novaes disse:

    Preciso seu texto, caro Sávio! Temo apenas que poucos dos que precisam lê-lo, entendam. Mas isso não é sua culpa. Você o fez muito bem no vernáculo e nas ideias. Por vezes, estamos sujeitos à conclusão de Zaratustra: “- Não sou boca para estes ouvidos”. Espero que não. Que seja apenas minha desilusão falando sobre a “massa” dos “instruídos”!

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