Macacos Que Somos

Mariana, Messejana, Paris


A indiferença atroz e a indignação seletiva vão muito além de disputas partidárias, à revelia de disputas eleitorais. Elas podem se revelar em círculos muito distintos, como esta semana deixou claro. E seguem uma trilha muito mais forte e pungente do que por valores estritamente culturais…

Valadares e Mariana: o maior desastre ambiental da história do país. Nossa Exxon no Alasca, nosso Golfo do México em Minas. Um dano ecológico que durará um século para se reparar. Vários mortos e desaparecidos, prejuízos materiais e naturais talvez incalculáveis. Uma mineradora privatizada com recordes mundiais de lucro por trás da falta de manutenção nas barragens – uma questão endêmica de “modelo de negócio”…

Messejana, Fortaleza: mais uma chacina no país; na quinta maior (e proporcionalmente ignorada) cidade do país, Fortaleza. Policiais militares são os principais suspeitos, uma vez mais. Das 11 vítimas (vários adolescentes, todos da periferia), apenas duas “tinham passagem”: um por acidente de trânsito, outro por irregularidade na pensão alimentícia. Mesmo assim, à boca pequena, o comentário perverso é quase sempre um só: “menos um!”.

Paris: televisão. Paris: televisão. Televisão aqui, não.

Por quê!? Por quê esta semana, quando tivemos o testemunho tão evidente de três situações extremas, as tragédias locais e regionais continuam recebendo menos atenção do que as notícias em tempo real de um grande centro!? Se falamos do atentado à Charlie Hebdo em janeiro, não seria por repúdio à solidariedade estendida às vítimas dos atentados na Europa que perguntamos isso! Que se estendam a elas nosso pesar, nossa empatia, preces (para quem é de prece)! Enquanto humanos, devemos prezar pela dignidade de todo ser humano – e um sujeito na França não vale nem mais nem menos do que na América do Sul ou no Oriente Médio. Mas é de causar estranheza que essa sucessão de eventos se repita como na semana daquele atentado contra a revista satírica francesa, quando os genocídios do Boko Haram, na geograficamente muito mais próxima Nigéria, passaram quase despercebidos…

Não é pelo número de vítimas ou pelo impacto a longo prazo: o caso na Nigéria vitimava dezenas de milhares de pessoas em poucos dias; e que os efeitos ambientais do desastre em Mariana superarão em longevidade quase todos os que hoje estão vivos. Seria, então, por dramaticidade? Isso pesa como critério de noticiabilidade para as redações, uma vez que vende muito mais notícia, dá audiência; mas novamente podemos lembrar que o peso do drama nas notícias menos exploradas pode ser considerada muito maior por si só, sendo consequência da seleção de foco dos jornais que sintamos muito mais carga em acontecimentos com números menos vultosos… proximidade? Outra vez se desmente esse critério, pois isso faria dos casos brasileiros notícias muito maiores. Peso histórico? Então quem poderia negar cobertura às tragédias no mundo muçulmano, epicentro das ebulições que atingem o ocidente na forma de atentados; ou ignorar o maior desastre ambiental do Brasil!?

Quando o horror em Paris toma mais espaço no noticiário de Fortaleza enquanto a mesmíssima cidade vive um dos piores momentos de sua história, isso não se dá de forma “natural” ou “espontânea”. O Brasil, então, mal se dá conta do que ocorre em sua quinta (em vias de se tornar a quarta) maior cidade em população – tanto quanto de seu pior desastre ecológico de todos os tempos.

O que definiria nossa sensação de territorialidade e pertença: a proximidade física dos territórios? Será!? (Morro do Papagaio - Belo Horizonte, MG)

O que definiria nossa sensação de territorialidade e pertença: a proximidade física dos territórios? Será!?
(Morro do Papagaio – Belo Horizonte, MG)

Há um fator estranho que inverte as probabilidades e explica em grande medida isso que se observa: o consumo. Essa resposta parece batida, enfadonha, talvez até “politizada demais” – mas continua vigorosa: o consumo orienta boa parte de nossa percepção acerca desses acontecimentos e pauta inclusive nossas preocupações e sentimentos coletivos. É evidente que há outros aspectos a considerar: interesses e valores políticos, culturais, históricos e sociais compõem de forma importante e significativa o quadro. Se explorado em demasia, o desastre em Minas Gerais poderia facilmente afetar a credibilidade do modelo privatista junto à opinião pública, assim como macular a atuação de partido X ou Y que facilitou as negociações ou geriu um governo que pecou em fiscalizar as empresas responsáveis. Há interesse dos conglomerados de comunicação para pender para este ou aquele lado das questões conflituosas. Há maior ou menor proximidade cultural com esta ou aquela nação. Mas há um elo evidentemente econômico no cerne de todas essas articulações, uma vez que o ocidente se notabilizou e assumiu as rédeas do mundo por força do seu capitalismo bem sucedido.

O caso de Fortaleza é nevrálgico para ilustrar essa hipótese: Curió, São Miguel e Messejana, bairros predominantemente residenciais onde ocorreram a maior parte dos assassinatos nesta cidade, não são zonas de consumo. Quando muito o são ocasionalmente para seus moradores e trabalhadores. Suas feiras e seu comércio varejista são pequenos e não têm nenhum atrativo mercantil em particular, de forma que, no máximo, a maioria dos fortalezenses, mesmo vivendo a poucos quilômetros, só ouviu falar desses lugares uma ou outra vez na vida. Já o território de Paris está logo ali, no piso das agências de viagem, propagandeado em cartazes e persuasivos através dos pacotes parcelados e (até recentemente bem mais) acessíveis ao bolso do tal “brasileiro de classe média”. Resultado disso é que Paris é, “psicologicamente”, um território muito mais plausível e provável de se transitar do que aqueles bairros de periferia, por mais próximos que sejam. Assim, não é por mero preconceito ou indiferença que a indignação nesses casos se torna seletiva: é por condicionamento. E pouco adianta dizer que é tudo apenas por força de manipulação da mídia: se nós não contribuíssemos decisivamente para que o conjunto se apresentasse assim, nos revoltaríamos em uníssono contra esse discurso direcionado da mídia ficasse evidente… mas aí está, e aqui estamos!

O encurtamento de nossos trajetos a pé é o mesmo passo que pegou carona na melhora econômica do país nos últimos anos e possibilitou a aquisição de novos bens (como o primeiro carro particular) sem mudança proporcional de cultura e estrutura (para o uso de transporte público, por exemplo). Tal conjunção reflete desde a desvinculação com pedaços das nossas cidades as relações que mantemos com o restante do mundo e das pessoas. Afinal, como não correlacionar tudo isso à criação dos shopping centers, simulações assépticas e de um ambiente de rua e praças (de alimentação) pavimentados a mármore e com ar climatizado!? Como ignorar a já nem tão nova onda de construção em condomínios fechados que funcionam como bairros privados? E dá-lhe consumo! Isso fragmentou nosso senso de pertença a certas territorialidades. Restaurá-la como antes, no entanto, é uma ilusão irrecuperável e anacrônica, pois o processo não é nem inédito ou novo, nem supérfluo, nem desconhecido.

Como disse antes, evidenciar o consumo como grande catalizador desse estado de coisas pode até ser visto como batido, mas continua sendo um argumento vigoroso. Naturalizamos a mercantilização de absolutamente todas as atividades cotidianas – do comer ao dormir, das relações sexuais aos cultos religiosos e ao noticiário; e por isso falar mal do consumo, que define nossa sociedade e nossa cultura, pode soar despropositado, utópico, fantasioso – virando alvo fácil de ridicularização carregada de ideologia. Na sua esteira, contudo, a dissociação das pessoas com os perímetros de terra continua produzindo certas condições de isolamento e desarticulação a despeito de nossas resistências. E em um momento crucial no qual a integração de redes de interesses sociais, ambientais e culturais exige uma comunhão de esforços que integre os locais ao global, a centralidade do consumo constitui o desafio maior que exaure essas instâncias.

Mariana, Messejana, Paris são todas resultado de uma escolha civilizatória que atingiu grandes sucessos mas produziu também imensos paradoxos, alguns dos quais deram indícios esta semana. Mostramos como o senso de proximidade é revertido por meio da mídia na trilha desse consumismo; mas, claro, poderíamos explorar o papel que essa ordem assumiu muito além na constituição histórica e social desses momentos… mas o que cabe nos perguntarmos agora, com a consciência de que nenhuma resposta adequada será simples ou fácil, é até que ponto participamos decisivamente disso. E podemos ter uma certeza: simplesmente ignorar a evidência de que tudo isso pode ser produto dessa sociedade que compartilhamos já é, certamente, uma resposta – com toda a probabilidade a pior de todas que poderíamos dar.


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Sávio Mota

Cearense de cabeça pontuda, dizem que é jornalista e rebento da tal geração Y. Cético desde sempre e corinthiano desde que é gente, gosta de ciências e futebol, cinema e documentários de tevê - além de ser apaixonado por História e por Evolução. É CODA. Tem um pequeno canal no Youtube, "O Mundo Paralelo de Neander". Wanna be a scientist. Normal não é.

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4 respostas

  1. Diego Nunes disse:

    Essa talvez tenha sido a melhor reflexão a respeito dos acontecimentos. E muito bem escrita, parabéns ao autor.

    • Sávio Mota disse:

      Grato, amigo!

      A gente sempre sente que poderia fazer melhor, mas fico contente que tenha quem aprecie o texto mesmo o assunto sendo tão sério e com “tantos parágrafos” (no Facebook, isso seria um exemplo bem acabado de “textão”…).

      Abraços!

  2. Diego Nunes Diego Nunes disse:

    Já parabenizei o autor no post e vou fazê-lo aqui também, ótimo artigo. Que seja lido por muita gente.

    • Savio Mota Savio Mota disse:

      Muito obrigado, Diego!

      Comentários como os seus dois, mesmo curtos e simples, mas sinceros, dão um impulso muito grande à nossa motivação de escrever. Que bom que gostou! E pelo mérito que o texto possa ter, espero que ao menos seu teor principal se espalhe… também acho que precisamos disso nesse momento.

      Grande abraço!

      P.S.: não pude ainda responder lá na página por dificuldade momentânea de acesso minha, mesmo… mas asism que puder, comento lá também! 😉

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