Ch de Dvidas

Não existe engarrafamento grátis!


Há um mantra repetido à exaustão por economistas, especialmente aqueles ditos liberais, que não desejam que o Estado intervenha na economia ou que querem a redução dos gastos com programas sociais: “Não existe almoço grátis!”. Alguns dias atrás, o prefeito de São Paulo, filiado a um partido cuja tradição não é liberal, respondeu aos manifestantes que exigiam passe livre, ou seja, passagens grátis para todos na mais populosa cidade do país: “Tem tanta coisa que podia vir na frente. Dar almoço grátis, jantar grátis, ida para a Disney grátis”.

Não escrevo este texto para julgar o governo Haddad, até porque moro muito longe de São Paulo. E quem dá conselhos à distância sem conhecer a realidade concreta são os líderes religiosos, coisa que não sou – embora não se exija qualificação alguma para o cargo, aliás, tenho visto muitos profissionais obterem sucesso nessa área demonstrando seu total despreparo intelectual.

Apenas escrevo este texto para mostrar que a reivindicação da moçada não é tão descabida assim. Não, não existe almoço grátis: alguém sempre paga por ele! Assim como eu, que não recebo bolsa-família, pago para que o Estado proporcione esse benefício a alguém, colocar ônibus e trens para transportarem pessoas dentro das cidades ou entre elas tem um custo. E alguém precisará pagar por ele. Dia desses, na fila de um banco, um idoso negro amaldiçoava o programa Bolsa Família dizendo que seria melhor que as beneficiárias do programa fizessem faxina como antigamente… Ninguém sobrevive tão somente com o benefício do Bolsa Família, mas prefiro pensar que esse benefício permitirá a uma mulher pobre fazer uma faxina a menos e ficar mais tempo em casa com os filhos. E que talvez assim ela olhe os cadernos dos filhos para ver se estão mesmo fazendo as lições. Nem todas o farão, eu sei, mas prefiro ser otimista.

Sim, sair de São Paulo numa manhã de sábado para banhar-se no mar de Santos tem um custo. Ir ao cinema, encontrar a namorada, abraçar um amigo, ir à igreja rezar (isso às vezes dá prazer a quem tem fé – nem sempre, outros vão lá por medo do Inferno), contemplar um óleo de Van Gogh, tudo tem um custo. Mas essa verdade é sempre lembrada quando se fala das coisas que dão prazer às pessoas. É preciso lembrar que as coisas desagradáveis também têm um custo. Não existe engarrafamento grátis, não existe câncer grátis.

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No documentário “O Veneno Está na Mesa” (disponível no Youtube), a então senadora Katia Abreu diz que os pobres não podem pagar por uma comida sem agrotóxicos. Isso ela diz diante de um funcionário da ANVISA que falou a uma revista sobre os malefícios dos agrotóxicos. O fato é que esses venenos, acumulando-se no organismo dos consumidores, causarão problemas de saúde que, mais tarde, causarão gastos nos hospitais públicos e particulares. Estimular uma produção mais saudável de alimentos, eliminando os agrotóxicos das lavouras, é uma forma de reduzir hoje os gastos com tratamentos médicos amanhã.

Da mesma forma, um engarrafamento traz prejuízos a toda uma sociedade. O tempo que você está no engarrafamento é o tempo que você não faz ginástica, não estuda, não namora, não brinca com seus filhos e seu cachorro, não cultiva as flores do jardim. Mais: a quantidade de combustível fóssil gasta por tantos carros não desaparece; acumula-se na atmosfera, piorando o aquecimento global, o que resultará em mudanças climáticas que prejudicarão nações inteiras.

Dia desses, eu estava às 18: 20 num engarrafamento no centro do Rio de Janeiro. O ônibus em que eu estava tinha menos da metade dos assentos ocupados. E, olhando pelas janelas, vi que não era o único. Tal engarrafamento não teria acontecido, ou teria menores proporções, se aqueles assentos estivessem ocupados. Mas as pessoas preferem ostentar status usando carros particulares.

Não estou aqui para ensinar ao sr. Haddad como ele deveria governar São Paulo, mas sustento que é dever de todo governante para com a espécie humana pensar em maneiras de desestimular o uso de carros particulares, e subsidiar passagens, a ponto de que seja economicamente desvantajoso tirar o carro da garagem, é uma maneira de fazer isso. Se as pessoas tivessem de escolher entre gastar abastecendo um automóvel particular e deslocar-se gratuitamente de ônibus, quantas ainda usariam carros? Qual seria o impacto disso no trânsito? Na qualidade do ar? Nas estatísticas de doenças respiratórias? Na emissão de gases de efeito estufa?

Vamos fazer as contas, governantes?


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Edson Amaro De Souza

Edson Amaro perdeu toda e qualquer esperança de ser normal. Paga suas contas lecionando Língua Portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro, delicia-se praticando teatro de vez em quando, comete a imprudência de escrever versos, atreve-se a praticar a arte da tradução e, como se não bastasse, torce pelo Vasco da Gama. Gosta de tomar chá e semear dúvidas.

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13 respostas

  1. Corredores de ônibus, ciclovias, renovação da frota e novos com ar condicionado.

    • Caro Leonardo, estou tentando responder a um comentário que vc fez ao meu texto no site. Eu não me acho qualificado para julgar o governo do Haddad, não vivo o cotidiano de São Paulo. Expressei isso no meu texto. A frase do Haddad foi um mote para desenvolver o texto. Repare que eu fiz um apelo a todos os governantes para que se esforcem para reduzirem o número de carros na rua. Como? A resposta não pode ser a mesma para todas as cidades. Mas algo precisa ser feito em todas elas.

  2. Não digo de graça, mas se fosse de qualidade já valeria a pena o transporte público!

  3. O humano age ponderando incentivos. Como incentivar governantes a trabalhar pelo povo, e não por ele ou pelos financiadores?

  4. Thiago Piardi Thiago Piardi disse:

    Fazer isso sem melhorar a qualidade e a quantidade do transporte público antes seria um absurdo.

  5. Imposto pelas emissões de CO.

  6. Na boa o verdadeiro motivo das pessoas “resolverem” seu problema de transporte comprando carros, ñ foi o preço da passagem, e sim a falta de qualidade. Mesmo que a passagem fosse gratuita mas com a qualidade que ai está, muitas pessoas que hj utilizam carro continuariam com ele pelo conforto, e ñ trocariam esse conforto pela gratuidade da passagem.

  7. O que pesa mesmo é a quantidade e qualidade, é só ver que muitos tem o direito do vale transporte pela empresa, mas preferem gastar com o carro…

  8. Eu gosto da liberdade, da privacidade e até da segurança que tenho ao pegar o meu carro e sair por aí. Gosto da ideia de ter meu próprio meio de transporte, de ser responsável por ele, de ter autonomia. Não abdicaria disso. Porém, entendo e compartilho da preocupação com o impacto que nosso modo de vida causa no ecossistema, de modo que não me resta muita alternativa a não ser optar por combustíveis menos poluidores, investindo neles, mesmo que a princípio seja economicamente inviável. Toda nova tecnologia passa pela etapa inicial que resulta em custo, até mesmo prejuízo para alguns, mas que representa um investimento para a sociedade. Alguém tem que ter a iniciativa para investir nessas tecnologias e correr o risco inerente. Claro que investir em programas de reorientação cultural (desculpe, foi a forma que encontrei de me expressar) tem seu resultado e se esse for satisfatório teremos um meio termo. Enfim, ambas as alternativas são boas e esperemos que possamos nos deparar com um bom resultado no futuro.

  9. <~~ Clica logo! é só curtir e seguir 😛 Trollando o DI

  10. Temos um problema sério com a supervalorização do carro. As pessoas se sentem na necessidade de mostrarem seu sucesso por meio de seus veículos. E o Estado ajuda isso, calcando parte importante de sua economia na produção de novos carros. Sei que vai parecer meio teoria da conspiração, mas acredito que a falta de melhoras no transporte coletivo talvez sejam intencionais, para que o brasileiro não desista do sonho de ter um carro, ou um mais novo. Teremos essa melhora quando enxergarmos que tempo os que amamos vale mais que uma lataria reluzente. Vai demorar.

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