Ch de Dvidas

O Ceará contra a intolerância


Quero fazer neste texto uma homenagem a um amigo com quem converso há alguns anos pelo Facebook e a quem nunca tive a oportunidade de encontrar pessoalmente, porque eu moro em São Gonçalo (RJ), e ele na capital do Ceará. Sebastião é funcionário público da Universidade Federal do Ceará e ganhou notoriedade em sua cidade após fundar um movimento social denominado ABRAVIPREAssociação Brasileira de Vítimas de Preconceito Religioso.

A razão de Sebastião ter fundado esse movimento é o ostracismo que lhe foi imposto pela seita testemunhas de Jeová. Ele foi membro da seita e, bem articulado, conseguiu espaço nos jornais de Fortaleza, nos quais escrevia defendendo os pontos de vista da seita sobre questões de fé. O que agradou muito aos seus colegas de fé, pois os jornais entravam onde eles não conseguiam ir e acendia discussões. E Sebastião seguia estritamente o pensamento da seita. Menos por um detalhe: há entre eles um grupo que dirige a seita, a partir de sua sede mundial no bairro do Brooklin, Nova York, chamado de “Corpo Governante”. É esse pequeno grupo, que eles creem ser dirigido pelo Espírito Santo, que escreve todos os textos da seita: aquelas revistas e livros que eles oferecem a Deus e ao mundo. Esse pequeno grupo tem entre eles o monopólio da palavra escrita. E Sebastião, ao mostrar que podia defender as mesmas ideias tão bem ou melhor que os “ungidos de Deus”, quebrou esse monopólio. Foi advertido para que parasse de escrever nos jornais e, não voltando atrás, foi “desassociado”. Isto é, “excomungado”, expulso da seita.

Ex-testemunhas de Jeová são impedidos de ter contato com amigos e familiares que não abandonaram a seita.

Aí você diz: “Qual o problema? O bispo de Recife não excomungou os médicos e o juiz que fizeram o aborto naquela adolescente estuprada pelo padrasto? Se a gente for procurar direito, vai encontrar um monte de gente excomungada por aí.” A diferença é que, se um juiz ou um médico é excomungado pela Igreja Católica, pouco muda em sua vida: apenas não poderá mais ter acesso à hóstia consagrada. (Você gosta de hóstia?)

A desassociação, praticada pelas testemunhas de Jeová, é mais grave. Os membros da seita são proibidos de falar com os desassociados (os que foram expulsos) e os dissociados (os que decidiram sair). Vou citar aqui um texto de segunda mão. Colhi esse texto no blog “Fora do Armário” do amigo Sergio Viula, um ativista da causa LGBT que entrevistou um rapaz que saiu dessa seita. Lá pelas tantas, o entrevistado deixou no blog a citação de uma revista das testemunhas de Jeová: “Suponha que um médico lhe recomendasse evitar contato com alguém que está infectado com uma mortífera doença contagiosa. Você entenderia as palavras do médico, e você seguiria estritamente o seu conselho. Bem, os apóstatas estão “mentalmente doentes”, e tentam contaminar outros com seus ensinamentos desleais. Jeová, o Grande Médico, nos diz que devemos evitar o contato com os apóstatas.” (Edição de Estudo da Sentinela, 15 de Julho de 2011  pág. 16)

A questão é grave porque as testemunhas de Jeová são desestimulados a ter vida social fora da seita. Você não as vê em grupos de teatro amador, em bandas estudantis, em escolinhas de futebol. Aqueles jogadores que apontam para o Céu quando fazem um gol e se dizem “atletas de Cristo” podem ser das mais diversas igrejas, mas não testemunhas de Jeová. O tempo delas é dividido entre a busca da sobrevivência no trabalho e as atividades da seita.

Então ser desassociado é algo grave para uma TJ. É seu principal medo. Anos atrás, a Dinamarca produziu um filme chamado “To Verdener”, que, nos EUA, foi traduzido como “Worlds Appart” (“Mundos Separados”). É a história verídica de Sara Dahl, uma ex-TJ que se apaixonou por um rapaz “do mundo” (fora da seita) e acabou rompendo com a religião. (Aliás, na última cena, a própria Sara aparece no filme, sentada no banco atrás daquele em que está a atriz que protagonizou o filme, em um trem que a leva para fora da cidade natal). Esse filme tentou concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro, mas a Academia não o aceitou. Já imaginaram se ele concorre à festa do Oscar, a divulgação que teria pelo mundo? Eu consegui assisti-lo pelo Youtube, num canal de ex-TJs, mas os detentores dos direitos autorais já o retiraram.

Uma cena marcante do filme é quando Sara, recentemente desassociada, cruza com uma jovem TJ na rua e a garota não a cumprimenta, cumprindo as ordens da seita. Imediatamente após essa demonstração de ostracismo, é atropelada. E morre recusando-se a aceitar transfusão de sangue, pois, se aceitasse, viveria no ostracismo: os membros da seita recusar-lhe-iam um “bom dia”. A decisão fica sendo entre uma morte física e uma morte social.

Esse é o drama pelo qual passa Sebastião. Ele cuida de sua mãe idosa, que tem Alzheimer. E a sua irmã lhe telefona tão somente para saber notícias da mãe. Ele teme que, se a doutrina da seita não mudar, perderá o contato com a irmã após a morte da mãe. Ele então começou a denunciar publicamente essa prática. Já conseguiu ser ouvido pelo Ministério Público, que investiga as denúncias. Estudantes de Direito escreveram trabalhos acadêmicos sobre a polêmica levantada.

Fortaleza está sendo alertada sobre o mal que a seita pode fazer às famílias. Panfletos são distribuídos. Carros de som divulgam depoimentos de ex-TJs de diversas partes do Brasil. Tal é o incômodo que o Corpo Governante, sediado em Nova York, já mandou cartas às TJs de Fortaleza sobre o caso. E várias pessoas colocam em suas portas adesivos da ABRAVIPRE. E as TJs não batem mais nessas portas.

Sebastião continua sendo cristão, mas os adesivos da ABRAVIPRE trazem o slogan: “Nenhuma crença está acima da lei”.

Recomendo que deem uma olhada no site da ABRAVIPRE:
www.abravipre.org

Espero que essa luta se espalhe e essa organização amplie suas atividades para acolher também ateus, umbandistas e outros tantos que sofrem preconceitos por suas convicções.


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Edson Amaro De Souza

Edson Amaro perdeu toda e qualquer esperança de ser normal. Paga suas contas lecionando Língua Portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro, delicia-se praticando teatro de vez em quando, comete a imprudência de escrever versos, atreve-se a praticar a arte da tradução e, como se não bastasse, torce pelo Vasco da Gama. Gosta de tomar chá e semear dúvidas.

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8 respostas

  1. Nossa, preciso de uns adesivos desses, pelo que diz na reportagem, os TJs não batem em portas com eles…

    • Vai lá no site da ABRAVIPRE, faça contato e peça. Como a ABRAVIPRE ainda não é conhecida fora do Ceará, você via ter que explicar à TJ que bater à sua porta do que se trata. Feito isso, a informação logo se espalhará entre elas e elas evitarão a sua porta. Aliás, peça dois: um pra colar na porta e outro para dar à primeira TJ, para que ela mostre às outras e diga: “Olha, isto aqui é uma ONG que apoia os desassociados. Não devemos falar com quem tiver esse adesivo na porta”.

  2. Eric Vanderson Tássio Krasnow

  3. Agradeço imensamente ao meu amigo Edson pelo espetacular artigo, que esclarece as práticas persecutórias das Testemunhas de Jeová contra os seus ex membros. Aproveito esta oportunidade para acrescentar alguns pontos sobre nosso movimento, a sua atuação junto a sociedade.

    A ABRAVIPRE foi institucionalizada visando defender pessoas que sintam-se vítimas por algum preconceito religioso, independente de sua religião, sua crença ou que não acreditem em uma divindade. Contudo, o carro – chefe da criação da Abravipre foi a intolerância praticada pelas Testemunhas de Jeová.

  4. O Ceará que coleciona uma história de lutas por liberdade, antes da fundação da Abravipre, iniciou uma campanha de denúncia contra a dita intolerância religiosa que provocou uma discussão ampla com a sociedade, movimentos sociais, entidades de direitos humanos, enfim. Por consequência conseguimos abrir uma representação no Ministério Público Estadual contra os pastores locais (chamados de anciãos), ocasionando uma onda de perseguição muito intensa contra os manifestantes. A Sociedade Torre de Vigia, órgão de matiz norte americana, o guarda- chuva das congregações das Testemunhas de Jeová no Brasil certamente era a protagonista de tais perseguições. A intensidade das perseguições de todo gênero visava primordialmente silenciar-nos, para que o MP não denunciasse os anciãos. Escrevemos em uma faixa: NÃO DESCANSAREMOS ENQUANTO ESTA INJUSTIÇA CONTINUAR!” De modo que, a Promotoria com base um um inquérito policial denunciou os anciãos por crime de discriminação religiosa, desagregação familiar e social. (Lei 7.716 art 14

    Após a denúncia do promotor, a Torre de Vigia que nos ameaçava constantemente de processos, que filmavam nossas manifestações, faixas, etc, surpreendentemente envia carta a todas as congregações da Grande Fortaleza e municípios cearenses (motivo de necessidades locais) orientando as Testemunhas de Jeová a não mexerem com os “apóstatas”

    A nossa história jurídica é muito extensa, mas irei continuar escrevendo sobre mais duas ações: ação civil pública pelo MPF/CE. e ação por danos morais pela Defensoria Pública. Por favor, aguardem.

  5. A Ação Penal contra os pastores locais, Ação Civil Pública do MPF, e a Ação Por Danos Morais contra a Associação Torre de Vigia e a Associação Bíblia e Cultual de Fortaleza, apesar de terem sido arquivadas na mais variadas instantâneas locais e nacionalmente serão objeto de denúncia contra o Estado Brasileiro na OEA – Organização dos Estados Americanos. Assim sendo, a ABRAVIPRE em consonância a uma diversidade de entidades de direitos humanos concluíram um documento composto de 12 páginas, que solicita aos comissionados da OEA:

    1) Que a Comissão se declare competente para resolver o presente caso, conforme os dispostos nos artigos 33, alínea “a” e 41, alínea “f” Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

    2) Que a Comissão declare expressamente que o presente caso é admissível, em razão de terem sido esgotados os recursos da jurisdição interna.

    3) Que a Comissão declare que, no presente caso, o Estado Brasileiro violou o artigo 12.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos

    4) Que a Comissão recomende ao Governo Brasileiro que:

    5) Retirar dos documentos que fazem apologia à desassociação e ao impedimento da convivência

    Nossas ações foram arquivadas sem resolução de mérito, porém, continuam proporcionando força política para intervirmos, denunciarmos não apenas a desassociação, mas todas as formas de intolerância religiosa.

    A abravipre continuará exortando através de seu slogan que, NENHUMA CRENÇA ESTÁ ACIMA DA LEI

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