O islã e a ciência antes do extremismo


por Caio Nascimento

O islamismo é uma ideologia política e religiosa monoteísta que segue os preceitos do Corão, que representa para a cultura local a palavra literal de Deus (no caso, Alá). Os islâmicos seguem uma doutrina rígida, pautada pelos preceitos morais deixados pelo líder religioso e político Maomé, que viveu entre os séculos VI e VII D.C na Arábia Saudita.

Traçar a trajetória que remonta deste período até o islamismo como o conhecemos hoje seria uma tarefa árdua e extensa que necessitaria, inevitavelmente, de uma análise sociopolítica e historiográfica aprofundada levando em conta desde o processo de unificação religiosa iniciado no século VII, a divisão gradual das doutrinas islâmicas em xiitas e sunitas mediante desentendimentos sociais e políticos ocorridos a partir da instituição do califado que sucedeu morte de Maomé e, muitos séculos adiante, até o surgimento o surgimento do movimento fundamentalista conhecido wahhabista século XVIII, que visava a expansão do islamismo e a consolidação da doutrina fundamentalista como a conhecemos hoje em grande parte das repúblicas islâmicas que exigem que seus códigos penais sejam compatíveis com o código da sharia, o sistema legal-religioso mais utilizado no mundo, responsável por milhares de execuções de mulheres, crianças, homossexuais e infiéis (como são conhecidos homens e mulheres que não seguem a doutrina islâmica e/ou cometeram apostasia).

O assunto hoje em dia remete a imagens não muito agradáveis – com razão. O mundo observa com curiosidade, medo e tristeza um oriente médio afundado em guerras, o desespero de famílias tentando fugir dos horrores do extremismo e, com certa frequência, as ações terroristas coordenadas pelo Estado Islâmico, como o ataque a uma universidade do Quênia que deixou mais de 140 mortos e o ataque uma casa de shows com mais de 2.000 pessoas em Paris, ambos em 2015. Enquanto este artigo era escrito, mais um ataque foi confirmado, desta vez na cidade de Bagdá, onde um carro-bomba deixou mais de 80 mortos e 140 feridos.

Esta é a imagem que temos do islã atualmente. Uma teocracia fundamentalista religiosa dedicada ao irracionalismo, ao extremismo e ao terrorismo. Entretanto, há uma curiosa história por trás desta cultura que antecede tudo isto. Mas, mediante as atuais circunstâncias, muitos ainda a desconhecem. Quantas vezes você já ouviu falar da vastas contribuições científicas e filosóficas produzidas pelos povos islâmicos? Já ouviu falar nos pressupostos da atomística árabe? Conhece a participação dos mesmos nos rudimentos da astronomia, da física e da medicina? Se não, a partir de agora você terá a oportunidade de conhecer um pouco mais a respeito do assunto!

 

Bagdá e os tradutores islâmicos

O islamismo dominou a maior parte do Oriente Médio e da África do Norte, chegando até a Espanha e a Ásia Ocidental. Porém, nos dois séculos que sucederam a morte de Maomé, o islamismo estava confinado, substancialmente, em Bagdá e outras povoações das redondezas. Durante esse período, após a missão enviada a Constantinopla por Al-Mamun, muitos escritos foram levados para a cidade e atraíram grande interesse dos eruditos muçulmanos, sendo fundada a partir de então uma “casa da sabedoria” (Bayt al-Hikmah, em árabe) que visava o incentivo de intelectuais (especialmente jovens) a participarem de traduções e estudos dos manuscritos romanos.

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Bagdá

Muitos dos textos levados para Bagdá estavam redigidos em grego ou latim, mas alguns já haviam sido traduzidos para os idiomas do Oriente Médio e, graças a este trabalho dos intelectuais islâmicos como o físico Hunayn ibn Ishaq (o maior tradutor do século IX), temos acesso aos escritos de Aristóteles, Euclides, Galeno e muitos outros pensadores fundamentais na compreensão da história da ciência e do pensamento moderno. Muitos dos escritos originais haviam desaparecido e o movimento promovido pela “casa da sabedoria” foi de grande importância para a transmissão deste conhecimento de geração para geração.

Desta forma, como Aristóteles e Galeno eram tão admirados em terras islâmicas quanto na Europa, a as influências locais especialmente nas áreas da filosofia e das práticas médicas transpuseram Ocidente e o Oriente e formaram, inclusive, as bases da ciência e filosofia europeias do século XII.

Neste período, Bagdá também alcançou os objetivos almejados desde a sua construção por Al-Mansur no ano de 754 e se tornou a maior cidade do mundo (pelo menos a maior fora da China), se tornando conhecida como um grande centro cultural.

 

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al-Rāzi

Medicina

O historiador da ciência William Bynum (2012) destaca que, entre todas as contribuições da ciência islâmica, a medicina foi a que teve o maior impacto no pensamento europeu. Sobre grande influência de estudiosos como Hipócrates e Galeno, cientistas médicos árabes produziram inestimáveis técnicas e realizaram grandes descobertas na área da medicina, farmacologia e química.

 

Entre estes, encontramos Abū Bakr Muhammad ibn Zakarīya al-Rāzi, conhecido no ocidente como Rhasis (854 – 925), que escreveu durante sua vida sobre diversos assuntos além da medicina, mas entre suas principais contribuições deixou descrições precisas sobre uma das doenças mais temidas da época, a varíola. Dentro desta descrição, o estudioso traçou as distinções entre o sarampo e varíola, uma vez que ambas eram frequentemente confundidas pela sintomática semelhante e o grande número de vítimas que fizeram no Oriente Médio. Rhasis criticou ainda a autoridade do médico romano Galeno e, contrariando a comunidade médica árabe, teceu críticas acerca das ideias de Aristóteles, inclusive as que mencionavam que o espaço seria finito.

Anatomia humana, por Avicena.

Anatomia humana, por Avicena.

Mais adiante temos o médico islâmico mais conhecido, Ibn Sina, conhecido no ocidente como Avicena (980-1037). Avicena era médico da corte do sultão de Bokhara e chegou a ser nomeado governador de uma província. Tentou reconciliar a filosofia de Aristóteles ao islamismo e produziu o texto médico de maior importância da idade média, o Al Qanum onde, de forma revolucionária, traçou rudimentos farmacêuticos distinguindo entre medicamentos simples e compostos além de descrever suas virtudes terapêuticas e apresentar diversas receitas e fórmulas de fármacos.

Durante o mesmo período da vida de Avicena, a medicina começava a se desenvolver na Espanha islâmica através do médico Al-Zahrawi, ou Abulcasis (936-1013). Albucasis tentou manter a medicina longe da filosofia e da teologia durante sua atuação próxima a Córdoba e foi o maior cirurgião da idade média. Exerceu grande influência na Europa cristã e escreveu uma enciclopédia médica com aproximadamente 30 tratados sobre temas como medicina, cirurgia, cosmética, química, etc. Na medicina, especificamente, versou em mais de 150 capítulos sobre os mais diversos temas relacionados a cirurgias, tais quais a cauterização, obstetrícia, litotomia, amputações, tratamentos de fraturas e afins. Não é difícil de compreender o peso desta vasta produção na idade média.

Por volta do ano de 1126, em Córdoba, nasceu o médico Ibn Rushd, conhecido como Averróis. Mesmo sendo mais conhecido por sua produção filosófica dedicada a comentar a filosofia aristotélica, Averróis produziu estudos e identificou a função da retina ocular. Outro grande feito que exerceu influência tanto na área médica quanto nos estudos ópticos em física. Vale lembrar que Rhasis, Avicena, Albucasis e Averróis foram apenas alguns exemplos escolhidos aqui com o objetivo de ilustrar algumas das contribuições mais importantes da medicina islâmica para a ciência moderna, mas se procurarmos mais a fundo veremos que tais pesquisas acompanharam a evolução da cultura islâmica desde seus períodos mais longínquos.

 

Astronomia e Matemática

A ciência árabe não se limitou apenas a Bagdá. Durante séculos ela se estendeu para a Espanha, Marrocos, Egito, etc. O árabe naquela época, segundo Steven Weinberg (2015), tinha na ciência o estatuto que têm os ingleses hoje em dia. Suas colaborações para além da medicina, farmacologia e filosofia renderam, inclusive, estudos basilares da astronomia como a conhecemos nos dias atuais. Ainda que neste texto você encontre alguns nomes associados a suas respectivas áreas de conhecimento, as realizações científicas da época foram obra de muitos indivíduos, talvez por isso nenhum deles receba na literatura recorrente o mesmo destaque que Galileu, Newton e outros, mas isto não reduz suas respectivas contribuições.

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Um dos primeiros astrônomos na história da ciência árabe foi Al-Khwarizmi (780-850), que trabalhou na Casa da Sabedoria em Bagdá. Persa, nascido no Uzbequistão, viveu em Bagdá durante o século IX e elaborou a partir de observações indianas uma série de tabelas astronômicas amplamente utilizadas. Também foi o responsável pelo surgimento da palavra “álgebra”, uma vez que esta derivava do nome de sua mais importante obra matemática, o “Hisab al-Jabr w’a-l-Muqabala”, dedicada ao califa Al-Mamun (entretanto, o livro em questão não versava sobre a álgebra que conhecemos). Al-Khwarizmi também foi o responsável pela apresentação dos algarismos indianos aos árabes que, por sua vez, passaram a ser conhecidos na Europa como números arábicos (atualmente conhecemos estes algarismos como hindu-arábicos).

Ainda durante este século, havia em Bagdá um grupo formado por outros astrônomos, entre eles encontrava-se Al-Farghani (805-870) (conhecido pelos latinos como Alfraganus), responsável por escrever um dos resumos mais difundidos acerca do “Almagesto” de Ptolomeu e por desenvolver sua versão pessoal do esquema planetário traçado por Ptolomeu na obra “Hipóteses Planetárias”. O grupo ao qual pertencia tinha como uma das principais funções o aprimoramento da medição da Terra feira por Erastótenes. Al-Farghani, por si só, sugeriu uma circunferência bem menor que séculos mais tarde viria a influenciar Colombo a pensar que a sobrevivência a uma viagem da Espanha ao Japão através do Ocidente seria possível (Weinberg (2015) define este como, provavelmente, o cálculo mais afortunado da história).

Entretanto, o árabe com maior influência na astronomia europeia Al-Battani (858-929) (ou Albatenius), nascido na Mesopotâmia. Através da utilização e correção do “Almagesto” de Ptolomeu, fez medições significativamente mais acuradas acerca do caminho do sol pelo zodíaco, do equador celeste, do comprimento do ano e das estações, etc. Também introduziu a quantidade trigonométrica “seno”, da Índia, ao invés da medida “corda”, muito aproximada, calculada anteriormente por Hiparco. A influência de seus trabalhos fora tão abrangente que até mesmo Copérnico fizera diversas citações a sua obra.

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Por último, mas não menos importante, Al-Biruni (973-1048) fora um dos primeiros a considerar a possibilidade de rotação da Terra e forneceu valores acurados para as latitudes e longitudes de diversas cidades. Realizou cálculos  Preparou, também, uma tabela da quantidade trigonométrica conhecida como “tangente” e mediu a gravidade específica de sólidos e líquidos. Curiosamente, mesmo vivendo no século XI, já zombava das pretensões da astrologia.

 

Conclusão

Através desta breve análise da colaboração dos islâmicos para a ciência, podemos ter uma perspectiva suficientemente ampla para compreender o peso de tais contribuições. Torna-se possível, ainda, a partir de comparações com o que vem a tona do Oriente Médio atualmente os prejuízos instalados pela instauração do regime ditatorial teocrático e do terror nos países árabes.

Uma cultura com uma tradição de produção e divulgação do conhecimento científico nas mais diversas áreas se tornou conhecida para muitos desta geração como uma civilização intelectualmente estéril, fundamentada em guerras e irracionalismos que se estendem para além do Oriente Médio vitimando milhares de pessoas por todo continente europeu e africano. Seu vasto legado torna-se cada vez mais obscuro para aqueles que não buscam a história do conhecimento em suas fontes nas mais diversas culturas. Desta forma, a visão da grande Meca do conhecimento durante aproximadamente 6 séculos vai sendo esquecida e turvada pelo horror que, frequentemente, vemos noticiado nos mais variados veículos de comunicação.

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Referências

BRAGA, Marco; GUERRA, Andreia; REIS, Claudio (2003); Breve história da ciência moderna: Volume 1 – convergência de saberes (idade média); 4ª edição, Editora Zahar, Rio de Janeiro;

BYNUM, William (2011). Great discoveries in medicine. Thames & Hudson;

BYNUM, William (2012). A little history of Science. Yale University Press;

DIAS, José Pedro Sousa (2005). A Farmácia e a História – Uma introdução à história da Farmácia, da farmacologia e da Terapêutica. Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa;

FARA, Patricia (2009). Uma breve história da ciência. 1ª edição brasileira, traduzido e impresso por Editora Fundamento, São Paulo;

KRUMERS and URDANG’S, History of Pharmacy (1941), 4th ed., J.B. Lippincott Company, Philadelphia;

LAQUEUR, Walter (1997). A history of terrorism. Published by Little, Brown, New York – ISBN: 0-7658-0799-8

MAKDISI, John (1985-6), Formal Rationality in Islamic Law and the Common Law. Cleveland State Law Review 34: 97–112;

ROONEY, Anne (2011). A história da física. Tradução de: ROSA, Maria. Editora M. Books do Brasil Ltda, São Paulo;

SCHUON, Frithjof (2006).Para Compreender o Islã. Editora Nova Era, Rio de Janeiro;

WEINBERG, Steven (2015); Para explicar o mundo: a descoberta da ciência moderna; 1ª Edição brasileira, tradução de: BOTTMANN, Denise. Editora Schawrcz S.A., São Paulo;

 

Matérias e Pesquisas

“Ataque a cristãos em universidade no Quênia deixa ao menos 148 mortos”. Publicado no site da Folha de São Paulo em 02/04/2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/04/1611625-ataque-de-milicia-a-universidade-no-quenia-deixa-15-mortos.shtml

“Ataques em Paris: estado islâmico assume autoria”, publicada em 14/11/2015 pelo site da BBC Brasil. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151114_franca_hollande_hb

“Ataque do Estado Islâmico deixa mortos em Bagdá”, publicada em 11/05/2016 pelo G1. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/05/atentado-em-mercado-de-bagda-deixa-mortos.html

Pew Research Center (2015). The future of World Religious: population growth projections, 2010-2050; Disponível em: http://www.pewforum.org/2015/04/02/religious-projections-2010-2050/

Pew Research Center (2015). Why muslims are the world’s fastest-growing religious group; Disponível em: http://www.pewresearch.org/fact-tank/2015/04/23/why-muslims-are-the-worlds-fastest-growing-religious-group/


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13 respostas

  1. Daniel Mota Daniel Mota disse:

    Não há como explicar a transformação do mundo islâmico ignorando aquela que é a principal determinação desse processo, que é o imperialismo, o desenvolvimento do capitalismo na Europa e nos EUA, a captura total das políticas de Estado pelos interesses do capital nas mãos de um pequeno grupo social, que ocasionou invasões com intervenções muito violentas em praticamente todas as regiões do mundo após a primeira metade do século XIX.
    E aqui não se trata de relativizar a imensa porcaria que é o Islã, mas de apontar o desenvolvimento do extremismo como uma resposta à esse processo, basta ver como o discurso dos grupos extremos envolvem sempre um ódio ao ocidente.

  2. Excelente, David Ayrolla. Acabar com a ignorância e colocar as coisas em seus devidos lugares é mais do que necessário e seu trabalho contribui exatamente neste sentido. PARABÉNS pelo belo trabalho!

  3. Adriana Ricci Adriana Ricci disse:

    Já leram os fundamentos da Sharia?

  4. Vejam o filme O FÍSICO… a disposição no Netflix, ilustra bem

  5. Murillo Souza Murillo Souza disse:

    Leonardo Nunes de Lima

  6. Vale a leitura Josias Zanelli

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