Macacos Que Somos

O vício destruidor da vez


A pior de todas as drogas vem se mostrando sorrateiramente presente em todos os cantos do país.

Começa como se diz de toda droga: recreativamente, entre amigos. Aprende-se a falar e fazer o que é “da turma”. Coisa à toa, inocente; uma “besteirinha”, mas que entretém e alimenta um lado sujo e recôndito de nossa natureza. Logo se recebe no meio daquele grupo restrito as recompensas sociais pela submissão à norma pré-estabelecida. Como se diz de qualquer droga: é divertido, muitas vezes engraçado – e irresponsável. Não se pensa no futuro, não se pensa em efeitos além do imediato; tampouco se pensa nos entes próximos, nos efeitos que isso tem sobre aqueles que, de fora daquele círculo vicioso e viciado, os rodeiam. O indivíduo se fecha para quem é de fora: seu comportamento e pensamento só faz sentido em favor do vício e daqueles que, igualmente viciados, o apoiam na dependência. Em algum tempo, à medida em que o problema se aprofunda, pode acontecer os primeiros episódios de agressão – primeiramente verbal; depois, possivelmente, física. Antes mesmo de chegar a esse ponto, o então já dependente dificilmente pede, aceita ou sequer reconhece a necessidade de ajuda: ao contrário, muitos se convencem de verem tudo de uma condição especial, talvez até superior, como alguém incompreendido e injustiçado. Alguns até se orgulham de sua “autodeterminação” e agem à revelia de qualquer senso partilhável de decência ou ética para além de seu grupo. O que um viciado pensa é o que ele faz: é um zumbi, sem espaço para reflexão; e não importa a ridícula caricatura que faça de si mesmo, ele se considera absoluto, alguém maior do que o próprio vício que, no entanto, já o define socialmente.

Será essa uma nova droga avassaladora? Não é: acredite, ela é mais antiga do que o uso abusivo de todos psicotrópicos aos quais geralmente se condena usando esse discurso. E é mais presente e comum do que todas elas, também: sendo até capaz de eu e você já termos experimentado ela diversas vezes sem nem sequer reconhecer… Não falo, portanto, de tenebrosas conspirações para o torpor coletivo, de estranhos aditivos alimentícios em escala industrial ou de mirabolantes alarmismos pseudocientíficos versando sobre os perigos do “hormônio do frango”… nada disso! Falo a sério de uma droga onipresente e patente, possível de ser identificada a qualquer momento em uma esquina, um bar, numa academia, nas filas de banco ou caixa de supermercado, em conversa dentro de um ônibus ou nas últimas campanhas eleitorais… Para que fique claro, peço aos leitores que considerem reler o primeiro parágrafo – duas, três vezes, se necessário; até que a sequência de fatores fique bem clara a sua frente. O motivo é simples: este é um relato bastante próximo da maneira como se descreve comumente qualquer vício por drogas, especialmente as ilícitas (maconha, cocaína, heroína, ecstasy, crack, oxi – o que for). É certo que as leituras da pedagogia-andragogia, psicologia, ciências sociais, filosofia e da medicina humanizada, entre tantas outras áreas de conhecimento, não corroboram esse relato tal qual aparece aqui; mas é assim que a maioria de nós, cidadãos comuns, enxerga o processo de viciamento e as consequências na vida do usuário. Não devemos simplesmente ignorar o que estudiosos pensam em favor de nossa intuitividade leiga, mas é o que quase sempre acontece; e já que é assim e que poucos de nós desistiriam de suas convicções tão facilmente quanto por tal pedido, vamos trabalhar então utilizando esse caminho…

Feito o exercício!? Fixados os passos dessa jornada do vício!? Pois bem, se o primeiro parágrafo é um retrato fiel do que é um viciado, está pronta e bem acabada a ideia de que a intolerância é uma droga. Aliás, de maneira geral bem pior do que os entorpecentes proibidos: mais presentes, insidiosa, generalizada e… tolerada, aceita em muito mais círculos, inclusive como método de legitimação! Afinal, quantos não riram alguma vez na vida de uma piada politicamente incorreta só porque todo o grupo em que estávamos riu, mesmo que achássemos pouca ou nenhuma graça? Quantos de nós não usamos uma expressão infeliz que, no final das contas, não tinha nenhum outro sentido senão de reforçar prejuízos históricos? Será que nunca tiramos alguma vantagem, mesmo que de forma inconsciente e não intencional, de situações práticas em que nós éramos os beneficiários de um preconceito social enquanto outros ao nosso lado eram injustamente danados por esses valores?

A homofobia, o racismo, o machismo, a xenofobia e a intolerância religiosa são vícios: dependências que, se descuidadas, se tornam entranhadas e consomem o senso moral e ético de qualquer pessoa, tornando o indivíduo seu escravo desumanizado. A mim impressiona, sinceramente, a capacidade das pessoas preconceituosas abstraírem que falamos de seus convivas: entes próximos, familiares, amigos, vizinhos. Sejam gays ou não, negros ou não, mulheres ou não – falamos de seres humanos! Gente que nos ajudou ou torceu por nós e às quais devemos gratidão; quem é capaz de uma gentileza gratuita ou nos sorriu em um dia em que tudo que precisávamos era um sorriso. Impressiona-me que, apesar disso, muitas pessoas se sintam tão em paz de serem injustas e ingratas com essas pessoas, que prefiram alimentar uma fantasia frustrante e perigosa de ordem e controle sobre o mundo e se empenhem em dificultar a vida livre e feliz de quem não tem nada a ver com elas. Que, em nome de entidades e códigos imaginários e/ou mal interpretados, ofendam e agridam inequivocamente pessoas concretas e reais; filhos, netos, irmãos, parentes de alguém  – às vezes do próprio ofensor! Que não se preocupem em corroborar e mesmo inocentar dos mais sutis aos vis atos de violência e extermínio a guisa de não tornar um argumento minimamente flexível – reforçando uma realidade cruel e perversa em que essas pessoas já são, de diversas formas, perseguidas, molestadas, ostracizadas e destruídas, destituídas de sua identidade. Impressiona e me entristece a banalidade desse mal de que o ser humano é tão costumeiramente capaz.

Ora, se não é por meio da minimização ou da negação do problema que muitos intolerantes continuam sendo refratários a qualquer crítica!? Se não é assim mesmo que subvertem a lógica e se dizem eles mesmos perseguidos (mesmo quando supostamente deveriam ser eles os representantes do “absoluto” e “onipotente”)!? Se não é com a mesma força bruta de um organismo dopado e alucinado (no exemplo, o “corpo social”) que ameaçam impor aos outros seus planos de ultraje!? A coisa se arma daí em diante: os intolerantes se apoiam mutuamente, “como qualquer grupo de viciados”; usam termos similares, expressões, pedaços de discurso prontos, criando uma linguagem própria, “como qualquer grupo de drogados”; tornam-se inflexíveis, acreditam ver o mundo de modo diferente, chegam a justificar agressões, inicialmente simbólicas e psicológicas, depois físicas… “como dependentes costumam ser”. Em última instância, alinham-se coletivamente mesmo quando haveria muitas e graves divergências entre si, de modo que um “preconceito mais leve” pode se tornar a porta de entrada para outros “mais pesados” e discursos de ódio atingem o nível político, a ponto de se dizer que “ideologia já não importa ou não existe”, especialmente se houver “um inimigo em comum”… o que fazer com essa droga e esses vícios, Brasil!?

DD2

 

A única maneira que consigo vislumbrar para sair de um vício se inicia por dois passos: um objetivo, de dimensão coletiva, social, e o outro bastante subjetivo, individual, existencial. Primeiramente, é preciso reconhecer as forças externas: de que lado se acumulam as dificuldades, as relações desiguais. A intolerância é marcada pela associação ao poder estabelecido, enquanto os intolerados se solidarizam e concretizam seus movimentos justamente em contraposição a isso. Tal entendimento deve nos permitir reconhecer quem, de fato, é perseguido e quem só tenta confundir os outros. Em segundo lugar, é oportuno abandonar os caminhos tradicionais e se admitir como alguém limitado, com seus problemas e vontades conflituosas (enfim, alguém humano). É a partir dessa imperfeição, e não a despeito dela, que se pode encontrar as verdadeiras potencialidades de cada indivíduo, permitindo-o ressurgir em superação e com uma efetiva melhora a partir de forças internas… tem sido dessa forma que se têm encontrado respostas mais significativas e seguras para lidar com drogas ilícitas. As ciências humanas e clínicas humanizadas podem não ser tão intuitivas e fáceis de entender em um primeiro momento, mas ao menos vêm oferecendo novas perspectivas de tratamento que, de maneira satisfatória, costumam funcionar de maneira bem mais efetiva do que os modelos tradicionais – e acredito que encarar a intolerância como mais uma droga poderia gerar resultados similares…

Os viciados em intolerância, dependentes de seus preconceitos para enxergar e entender de maneira torpe o mundo, agem exatamente da forma como eles mesmos retratam qualquer drogado que condenam. Chegam até mesmo a influenciar crianças à intolerância desde a mais tenra idade, como se fossem traficantes vendendo bombons, no que muitos consideram “liberdade de criação” ou, pior, “liberdade de culto”… não pensem que confundo os religiosos com pessoas intolerantes, mas no âmbito do sagrado essa associação além de extremamente perigosa é oportunística e historicamente reconhecível, especialmente pelo fato das clínicas e dos métodos convencionais de dependência usarem com grande naturalidade elementos doutrinários da fé. Ora, se para os métodos convencionais e os intolerantes que costumam reverenciá-lo um drogado é alguém sem força de vontade, que precisa renunciar aos próprios apegos e entregar sua vida à reordenação por um “princípio maior”, peço, pois, que se permitam me ouvir e acatar por um instante o que acredito ser a mais profunda, benéfica e razoável forma de “(boa) fé”: aquela em que, independente de provas imediatas, podem acreditar serem pessoas melhores não que os outros. reconhecem e combatem, a despeito de dúvidas persistentes, sua própria teimosia intransigente, irresponsável, desumanizadora!

Que se curem primeiro de seu próprio vício!


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Sávio Mota

Cearense de cabeça pontuda, dizem que é jornalista e rebento da tal geração Y. Cético desde sempre e corinthiano desde que é gente, gosta de ciências e futebol, cinema e documentários de tevê - além de ser apaixonado por História e por Evolução. É CODA. Tem um pequeno canal no Youtube, "O Mundo Paralelo de Neander". Wanna be a scientist. Normal não é.

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2 respostas

  1. Patricia disse:

    Texto daqueles que faz a gente pensar muuuito a respeito de uma associação aparentemente tão simples, mas tão certeira, tão óbvia também. A comparação entre os vícios não se perde em nenhum momento: é assim mesmo. Todas as características estão aí vislumbradas.
    Este texto faz jus ao nome da coluna. Macacos que somos.. O que precisamos mais é disso. Reconhecer nossa humanidade. Mais: nosso lugar no mundo, macacos que somos. Buscar saber o que não sabemos, e aceitar nossas limitações.
    adorei!

    • Sávio Mota disse:

      Sobre o tema do texto, acredito que um dia essa correlação será mais esclarecida e admitida do que por simples metáfora, como fiz aqui. Mas isso é chute, um ensaio… pouco há de científico até agora nessa hipótese (pelo menos a partir do que eu sei).

      Quanto ao restante, obrigado pelas palavras, Paula. Espero que a coluna esteja sempre mais perto de atingir isso mesmo que você falou: nossa autopercepção enquanto espécie animal que somos!

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