Dialtica

“Prontos para a batalha”: os gladiadores da IURD


Causou polêmica a divulgação recente de vídeos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) do Ceará apresentando jovens fiéis marchando, vestindo fardas militares pretas e verdes, prestando continência e gritando palavras de ordem. Este grupo, intitulado “Gladiadores do Altar”, faz parte de um programa de formação de evangelizadores realizado pela Universal e motivou um intenso debate sobre a natureza e os riscos de uma legião religiosa com formação militar surgindo no país.

De um lado, há aquela parcela da sociedade que vê nisto uma ameaça a um país laico mas predominantemente religioso, como o nosso. Do outro, há aqueles que entendem este “exército” apenas como um simbolismo que, além de não representar nenhum perigo, seria apenas uma forma pensada pela IURD para incentivar os jovens a pregar o evangelho. Quem está com a razão?

Muito embora nem todas as disputas argumentativas tenham uma resposta tão evidente, a esta é relativamente fácil de se chegar. Mesmo que a IURD tenha a melhor das intenções (e isso é discutível), claramente a criação de um exército religioso incorre em risco para uma sociedade como a nossa!

Ainda que o simbolismo militar esteja presente na nomenclatura ou na estrutura de outras organizações a redor do mundo (como o “Exército da Salvação” ou os escoteiros), o risco aqui é o de unir dois componentes conhecidos por gerar uma mistura instável e de fácil combustão: fé religiosa e disciplina militar. Enquanto a primeira dá a justificativa para qualquer atitude em nome da sua crença, a segunda fornece as ferramentas necessárias para doutrinar e preparar soldados para se submeterem a qualquer ordem, sem questionamento. E ambas têm todos os dispositivos necessários a gerar fanáticos cegos pelos seus ideais.

Não obstante haja um certo exagero em afirmar que a formação desta legião da IURD implicará inexoravelmente na criação de um grupo paramilitar, é inegável que o que se forma ali é um grupo treinado para, no mínimo, parecer com um exército. É um simbolismo perigoso, ainda mais para uma esfera alinhada com alguns preceitos ideológicos da extrema-direita. É inevitável que se tema que, ainda que criada com fins pacifistas, esta ferramenta possa sair do controle, sobretudo com a mudança gradual das lideranças e do avanço do radicalismo religioso no país. A história é rica em casos semelhantes.

Basta um mero exercício de imaginação e podemos conjecturar o que pode acontecer se, em um única destas unidades, um líder fundamentalista considerar que, digamos, um terreiro de umbanda ou um evento ateísta nas proximidades é ofensa demasiada para uma crença que possua tropas à disposição. A ferramenta está lá, e o fundamentalismo não é conhecido por ponderar seus atos. Não é necessário que se pegue em armas para que se intimide alguém, sobretudo se o que você tem é uma legião submissa incondicionalmente. O que pode se seguir a isso é o inqualificável…

Os Gladiadores do Altar já contam com 4.300 participantes, e não se restringem apenas à unidade do Ceará, espalhando-se por igrejas da Universal espalhadas por todo o país (e também já no exterior). Seu logotipo é o gládio (espada de lâmina curta utilizada pelas legiões romanas) e um escudo. Entre seus lemas, está o bordão “Prontos para a batalha!”. A pergunta que obviamente surge é: batalha contra o quê? Quem é o inimigo, corpóreo e concreto, que demanda uma legião física para enfrenta-lo?

Depois da polêmica, vários vídeos da Universal mostrando reuniões do grupo, que em tudo se assemelhavam ao ritual militar de reunião e doutrinação de tropas, foram retirados do ar. Se o objetivo do grupo é nobre e a preocupação é injustificada, qual o motivo da retirada destes vídeos? Terá a IURD percebido a contradição inerente à criação destas tropas?

As armas dos gladiadores eram gládios, maças, tridentes e outras armas mortíferas, não palavras ou ensinamentos. E um exército impõe seus objetivos não pela argumentação ou pela educação, e sim pela força. Não há simbolismo mais destoante para quem alega promover a paz e o amor!


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


David Ayrolla

David Ayrolla é carioca, mas tem dúvidas se nasceu no planeta certo. Cético até a medula, vê na ciência e na filosofia as melhores ferramentas para a compreensão do universo. Vlogger do canal PAPO DE PRIMATA, tem como principais hobbies cinema, literatura e discussões acaloradas com os amigos (de preferência, regadas a cerveja bem gelada).

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4 respostas

  1. Savio Mota disse:

    Não há como negar: colocar todo esse aparato à disposição de uma liderança religiosa é absurdamente inadequado. Conquanto tenha sido a regra na Antiguidade e na Idade Média, é a marca da modernidade conquistar espaços diferentes para a religião e o Estado – e para o bem de ambos!

    NÃO SE PODE CONDESCENDER NEM UM MILÍMETRO DE TOLERÂNCIA À UNIÃO ENTRE “A IDEOLOGIA DO SUPREMO ABSOLUTO” (A RELIGIÃO) E “A PRERROGATIVA EXCEPCIONAL DO USO EXCLUSIVO DA FORÇA” (A POLÍCIA OU O EXÉRCITO). E consideremos tudo isso ainda mais porque a motivação dessa iniciativa é flagrantemente ideológica, movido JUSTAMENTE pela força dos simbolismos e da metáfora. O ser humano é um ser simbólico e leva isso à concretude! Eis o perigo obsceno!!!

    Excelente reflexão e oportuno texto do parceiro e amigo David Ayrolla!

  2. Gisèle disse:

    Como diria Einstein:
    “Eu despreso profundamente aqueles que amam desfilar em fileiras sobre a musica, só pode ter sido por erro que eles receberam um cérebro, uma medula espinhal já teria bastado”

  3. Gabriel Longo disse:

    Pouco depois de tomar conhecimento destes fatos incabíveis eu me perguntei:

    Será que os organizadores desses “exércitos” pretendem um dia inserir estes jovens em instituições militares (policia militar, forças armadas, etc), criando assim grupos leais operando de dentro desses órgãos públicos?
    Não sei, espero que não. Mas torno a me perguntar: Esses lideres religiosos estão lendo e se encantando por doutrinas fascistas?

  4. Gisèle disse:

    PS: gostei do principo da resposta, mas bem que poderiam ser questões um pouco mais dificéis, nem que seja um principio qualquer ou uma definição qualquer, que a pessoa tenha que colocar a palavra que a define.
    Tipo:
    “não é, rigorosamente, uma forma de governo, mas uma situação crítica em que vivem instituições, ao sabor da irracionalidade das multidões.”
    Resposta – Oclocracia

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