Conjecturas Histricas

Saladino, o herói mulçumano


“Glória a Deus que gratificou o Islã com esta vitória e que reconduziu esta cidade ao bom caminho após um século de perdição! Honra a este exército que Ele escolheu para consumar a conquista! E saudação a ti, Saladino Yussef, filho de Ayyub, que restituiu a esta nação sua dignidade injuriada!”
— Mohiedin Ibn al-Zaki, sacerdote muçulmano durante a conquista de Jerusalém.

Durante a época das Cruzadas ( séculos  XI e XIII), cristãos e muçulmanos entraram em conflito pela disputa territorial da chamada Terra Santa, situada em Jerusalém. Tristes relatos de batalhas violentas de ambos os lados eram passados de gerações em gerações, alimentando o ódio entre as duas religiões. Ódio que se dividia entre motivos dúbios, numa mistura de religião e política, expansão territorial e fé, numa combinação difícil de desfazer.

Nascido na cidade de Tikrit, no atual Iraque, em 1137, Ṣalāḥ ad-Dīn Yūsuf ibn Ayyūb – mais conhecido no ocidente como Saladino – foi o principal sultão de sua época. De origem curda (curdos são aqueles pertencentes a um grupo étnico que se considera como sendo nativo de uma região frequentemente referida como Curdistão, que inclui partes adjacentes ao Irã, Iraque, Síria, Turquia, Armênia e Geórgia) e adepto do islamismo sunita, Saladino é reconhecido até hoje pela forma como atuou em suas batalhas contra os Cruzados. Crueldade com os inimigos vencidos? Não! Saladino além de conquistar territórios e o respeito de seus súditos, também conquistou a admiração de seus adversários cristãos pela forma digna com que os tratava.

Ṣalāḥ ad-Dīn Yūsuf ibn Ayyūb (Saladino)

Saladino teve como principais tutores seu pai e seu tio. Enquanto aprendia com o pai, Najm ad-Dim, a usar a inteligência para vencer batalhas e dominar os exércitos inimigos com o menor esforço possível, seu tio, Xirkuh, ensinava-o a cavalgar e lutar com a espada. Só que em uma família onde ele era o terceiro irmão, não era de se esperar que ele fosse ocupar algum posto muito importante na sucessão familiar. Porém, como seu irmão mais velho morreu em uma batalha, e seu pai, segundo alguns historiadores, considerava o segundo filho desleixado e teimoso, Saladino acabou assumiu o posto de líder da família.

Na época, o Oriente Médio passava por uma violenta guerra civil devido a divisão da religião islâmica entre  facções sunitas e xiitas. Como seu tio Xirkuh era chefe do exército sunita que pretendia invadir o Egito e lutar contra os xiitas, Saladino acompanhou-o como auxiliar. Após quatro anos de batalhas, conseguiram conquistar o Cairo, e Xirkuh foi nomeado vizir com o título de al-Malik al-Mansur al-Amir djuyush, em 18 de janeiro de 1169. A gestão de assuntos decorrentes ficou a cargo de seu sobrinho, embora não existam muitos relatos e informações documentais datando essa época. Xirkuh acabou morrendo repentinamente  em 23 de março daquele ano, sendo enterrado no Cairo. Saladino então ganhou notoriedade nas campanhas do Egito,  sendo nomeado Sultão do Egito em 1175 (quando tinha pouco mais de 30 anos). Ele unificou o país (1164-1174), a Síria (1174-1187) e a Mesopotâmia, tornando-se um poderoso dirigente. Mas seu maior feito foi conquistar a Terra Santa e devolvê-la aos muçulmanos!

Sua fama também se fez entre seus inimigos. Segundo seus biógrafos e historiadores, Saladino era diplomático, tentando sempre fazer acordos, negociando com adversários e, somente como última instancia, partia para a guerra e para a busca de seus objetivos a qualquer custo. Esse tom conciliador ajudou no dialogo entre as facções sunitas e xiitas, minimizando o conflito entre elas e facilitando suas conquistas na capital Damasco, no Cairo e em Bagdá, somando aproximadamente mais de 2 milhões de habitantes sob sua liderança. Como Sultão, ao contrário de seus administradores anteriores, Saladino procurava transformar os impostos recolhidos do povo em recursos e melhorias para o próprio povo, como escolas corâmicas, melhor pagamento para seus soldados e distribuição de comida quando a colheita não atendia toda a população. Mas ele, acima de tudo, é lembrado como salvador e libertador do povo diante das investidas cruzadas, que mataram, destruíram, roubaram, estupraram,  raptaram e escravizaram muitos muçulmanos. Saladino também é lembrado pelo fato de que, durante a Terceira Cruzada, derrotara os três mais poderosos reis da Europa na época: Filipe Augusto (França), Ricardo, Coração de Leão (Inglaterra) e Barbarossa (Sacro Império Romano-Germânico).

Saladino lutou contra os Cruzados em várias batalhas, e na maioria das vezes tinha saído vencedor. Finalmente, com quase toda a região unificada, tomou Jerusalém em julho de 1187, após a Batalha de Hattin.

Esta tomada conquistou muito respeito para si e para seus exércitos. As forças cristãs comandadas por Guy de Lusignan, Raimundo III de Trípoli e Reinaldo de Chatillon foram praticamente dizimadas pelos muçulmanos. Mas ao marchar para conquistar de vez a cidade de Jerusalém, em outubro do mesmo ano, Saladino teve que mudar seus planos iniciais.

Saladino ao cercar a cidade de Jerusalém não tinha intenção de dar anistia aos cristãos que vivem na cidade. “Trataremos vossa gente como trataste a nosso por ocasião da conquista (Jerusalém), massacrando, escravizando e cometendo outras selvagerias semelhantes”, disse, mas o ilustre barão Balian de Ibelin, um cavaleiro feito defensor da cidade após a queda de Guy de Lusignan na Batalha de Hattin, conseguiu negociar uma trégua com Saladino. Balian ameaçou destruir todas as mesquitas e locais sagrados e matar todos os muçulmanos que viviam na cidade. Saladino consultou seus ulemás (sábios, teólogos das leis mulçumanas) e decidiu tomar a cidade pacificamente. Os francos porém, se tornariam seus escravos, embora pudessem retomar sua liberdade diante resgate.

Em 2 de outubro de 1187, o sultão entrou em Jerusalém como conquistador e manteve sua palavra. Nem um só cristão foi morto. Os barões poderiam pagar seu próprio resgate, mas os pobres seriam prisioneiros. Saladino se comoveu até as lágrimas com o sofrimento das famílias que se separavam ao partir para o cativeiro, e com isso acabou libertando praticamente todos. Seu irmão Al-Ãdil  solidarizou-se de tal modo que solicitou mil prisioneiros para si mesmo e imediatamente os libertou. Quando viu o patriarca Heráclio fugir da cidade com todo seu tesouro, o historiador muçulmano Imãd ad-Din implorou a Saladino que confiscasse esse ouro para redimir os cativos restantes, mas o sultão se recusou; juramentos e tratados serviam para ser cumpridos ao pé da letra! “Os cristãos de toda a parte lembrarão a bondade que tivemos para com eles”.

Ele estava certo. O Ocidente tinha plena e incômoda consciência de que este governante maometano agira de modo muito mais “cristão” que os cruzados quando conquistaram Jerusalém.

Ciente de que em uma guerra nem sempre os acordos são respeitados e que entre os perdedores havia o medo iminente de um massacre, coube mais uma vez a Saladino dar mostras de sua sensatez, permitindo a peregrinação aos fiéis não muçulmanos, aumentando a guarda dos lugares de culto dos cristãos, como a Igreja do Santo Sepulcro, e dando ordens rigorosas a seus homens para que não perseguissem quaisquer cristãos.

Túmulo de Saladino, em Damasco

Túmulo de Saladino, em Damasco

Saladino morreu no dia 4 de março de 1193. Conta a lenda que, apesar de sultão, líder amado pelo povo que o cercava, ele morreu pobre, pois teria doado todo seu tesouro antes de morrer. Assim como Frederico II, Saladino também deu um exemplo de tolerância entre religiões em uma época tão conturbada. Sua tumba está em Damasco, na Mesquita de Umayyad. Enterrado no Mausoléu de Saladino, no complexo da Mesquita dos Omíadas, em Damasco, e é uma atração popular.

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Apesar de algumas mudanças históricas, manipulações de alguns fatos e omissão de outros, algo compreensível por se tratar de uma adaptação cinematográfica, recomenda-se o filme “Kingdom of Heaven” (Cruzada), que tem por tema a retomada de Jerusalém pelos muçulmanos, em 1187. Filmada em Marrocos e lançada em 6 de maio de 2005, foi dirigida por Ridley Scott, que assim definiu a obra: “O filme é sobre a paz, a tolerância e a possibilidade de convivência entre povos de diferentes orientações religiosas, culturas e crenças“.


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Alisson T. Araujo

Gaúcho dos que gosta de um chimarrão bem amargo, acadêmico do curso de História e pesquisador, técnico em radiologia, músico, guitarrista e um amante da libidinosa Ciência e Filosofia. Seu foco em história é povo, cultura e religião, com ênfase em monoteísmos, suas influencias, origens e a eterna dúvida sobre sua verdadeira função social. Fã de cinema, música, séries, HQ’s e cultura pop.

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9 respostas

  1. Tão nobre e esclarecido, né? Pq será que destruiu a biblioteca de Alexandria?

  2. Sou grande admirador de Saladino, Edilson Rodrigues Palhares. Infelizmente há pouco material sobre ele em língua portuguesa. Li em 2010 a biografia escrita por Stanley Lane-Poole: “Saladino: o sultão todo-poderoso e unificador”. (2001) Du caraleo! Há um trabalho formidável “Guerreiros de Deus: Ricardo Coração de Leão e Saladino na Última Cruzada”, de James Reston, este se encontra em português. Só acho foda a pagação de pau para a besta em quatro patas que era o rei Ricardo. Antes de estrear “Cruzada” (2005) eu saí falando que tinha certeza que iam botar um moleque interpretando “A Flor do Deserto”, apelido que os próprios ocidentais deram a Saladino. Felizmente o sírio Ghassan Massoud ficou muito bem como Saladino, embora eu deteste o filme no geral.

  3. Saladino não destruiu a Biblioteca de Alexandria. Ele vendeu livros para financiar campanhas.

  4. Armando, o que o nosso amigo Guilherme não sabe é que a segunda Biblioteca de Alexandria foi destruída pelo radicalismo dos cristãos coptas do Egito cerca de 800 anos antes de Saladino!

    • Precisamente, Edilson Rodrigues Palhares. O envolvimento de Saladino com queima de livros foi uma ação pontual (nem por isto deixa de ser questionável, claro) contra um grupo radical que tomava certa a existência de Ismael e negava a de Isaac. Se Saladino seguisse esta orientação, ajudaria a combater o pensamento judaico, como certos setores queriam. Não foi o caso dele. Eu confesso que precisaria retornar à pesquisa para colocar os dados exatos aqui. Mas, de lembrança, o que me consta é que parte das obras de Alexandria que sobreviveram à barbárie seja de que filiação for acabaram vendidas por Saladino a fim de se obter fundos para as campanhas contra os cruzados.

    • O que me faz lembrar de outro evento que ninguém menciona: as autoridades palestinas, na ocasião do controle do Norte da África e do Oriente Médio pelo AfrikaCorps, declarou que qualquer maus-tratos a judeus ou colaboração para a captura de judeus seria punida com morte, Edilson Rodrigues Palhares. As pessoas tendem a limpar o nome da “Raposa do Deserto”, epíteto pelo qual o filho-da-puta do Erwin Rommel ficou conhecido, dizendo que o homem não fez nada para perseguir comunidades judaicas em suas ações, quando na verdade ele não encontrou foi a colaboração necessária.

    • Não sabia desses pormenores, gente. Valeu pelo toque! Vou estudar.

  5. Vi em um documentário uma vez que ele gostou de lutar contra Ricardo coração de leão, e que ate ficou triste quando seu rival foi morto em um conflituo diferente da cruzada 🙂 Alguém mais sabe algumas coisa sobre, eu gostei muito de assisti a hst deles .

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