Ch de Dvidas

Simone, alegria dos e das trans


No dia 24 de outubro, um trecho de Simone de Beauvoir caiu na prova do ENEM, o que muito alegrou as feministas e o público transexual, e fez com que parlamentares como Feliciano e Bolsonaro, que ninguém consegue imaginar dentro de uma biblioteca, proferissem seus rancores contra o Ministério da Educação. O trecho foi o seguinte, que cito a partir do meu exemplar: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.” (BEAUVOIR, Simone de. “O Segundo Sexo”. Tradução de Sérgio Milliet. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, pág. 361)

Na página eletrônica da Folha de São Paulo, um conservador comentou: “Não tenho nada contra homossexuais, mas… menino nasce menino e menina nasce menina.” Eu respondi-lhe: “Simone não estava falando de homossexualidade. Nem de transexualidade. Que são coisas diferentes. Você saberia disso se frequentasse bibliotecas.”

Sim, tenho certeza que o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, se ainda caminhassem pelas ruas de Paris, levantaria bem alto a bandeira dos transexuais, mas não é disso que se trata, a princípio, o texto de Simone, embora qualquer um que hoje se declare existencialista verá a questão transexual como um desdobramento necessário das afirmações do casal.

Sartre e Beauvoir

Sartre e Simone

Começo dizendo que não admito tratar Simone como uma discípula de Sartre. É verdade que, por algum tempo, ela ensinou as teses de Sartre na Universidade, tarefa que logo abandonou para dedicar-se à elaboração de sua obra literária e filosófica. Mas o que chamamos de filosofia existencialista é basicamente as discussões levantadas pelo casal Sartre e Simone e seu contemporâneo Albert Camus, que não se declarava existencialista nem estava muito próximo ao casal, mas em cuja obra se percebem algumas afinidades. Talvez um dia eu comente isso nessa coluna.

O básico do Existencialismo é a necessidade de posicionar-se no mundo sem crer em Deus. Na obra “O Existencialismo É Um Humanismo”, livreto resultante de uma palestra de Sartre, ele diz que há um existencialismo cristão. Mas, sinceramente, se naquela época, havia cristãos se declarando existencialistas, propondo uma outra vertente para o existencialismo, a obra deles se perdeu na poeira do tempo, pois é o existencialismo ateu que continua de pé fazendo a cabeça de quem curte Filosofia.

O essencial é que Sartre nega a existência de um Criador. Não havendo Criador, não há projeto para o ser humano. “O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define, O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo”. (SARTRE. “O Existencialismo É Um Humanismo”. Tradução de Rita Correia Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987, págs. 5 e 6. – Coleção “Os Pensadores”.)

Ou seja: qual a diferença entre um homem e uma tartaruga? A tartaruga já nasce tartaruga. Como vemos nos documentários dos ecologistas, as tartarugas não têm pai nem mãe. A fêmea enterra os ovos na areia e, quando eles eclodem, os filhotinhos se arrastam para as águas. Não há quem os eduque: eles já sabem o que é ser uma tartaruga e levam a vida como tartarugas que são. Ao contrário, quando nasce um ser humano, é preciso que os pais o alimentem, lhe façam a higiene, o ensinem a andar e a falar e, em meio a essa educação, a maioria veste de azul os bebês que nascem com órgãos sexuais externos e de rosa os que nascem com órgãos sexuais internos. É aí que a sociedade começa a impor papéis que ela acha adequados à anatomia desses bebês. O protesto de Simone é contra isso: a anatomia não tem que ser um destino.

E qual é esse destino contra o qual Simone protesta? Outra declaração clássica da filósofa é: “O homem é definido como ser humano e a mulher, como fêmea. Quando a mulher quer ser tratada como ser humano acusam-na de querer ser homem”. Essa eu citei de cabeça e não lembro em que página do livro está.

Então chegamos na parte que irrita os criacionistas. Diz o “Gênesis” que Deus criou o homem e depois decidiu que não era bom que o homem continuasse só. Ou seja: a mulher foi criada para satisfazer a necessidade do homem, que não tinha uma companhia. A consequência disso é o discurso segundo o qual a mulher tem de ser submissa. Discurso esse defendido e repetido por mulheres religiosas. Discurso esse que é conveniente para essas mulheres porque lhes tira dos ombros a responsabilidade de atuarem como protagonistas de suas próprias vidas. O que Simone diria a essas pessoas? “Efetivamente, ao lado da pretensão de todo indivíduo de se afirmar como sujeito, que é uma pretensão ética, há também a tentação de fugir de sua liberdade e de se constituir em coisa. É um caminho nefasto porque passivo, alienado, perdido, e então esse indivíduo é presa de vontades estranhas, cortado de sua transcendência, frustrado de todo valor. Mas é um caminho fácil: evitam-se com ele a angústia e a tensão da existência autenticamente assumida.” (BEAUVOIR, op. cit., pág. 22)

Sim, a sociedade dominada pelos homens quer a mulher submissa e passiva. Por isso, a mulher é o Outro, é o não-homem. Razão pela qual uma revista de notícias fala de tudo, mas uma revista feminina trata do ambiente doméstico. Há as revistas que tratam de economia, política, esportes, artes, ciência, enfim, do mundo além das portas do lar e há as revistas femininas, cujo universo é o estreito ambiente doméstico: como educar os filhos e satisfazer o marido na mesa e na cama.

A luta feminista é para fazer das mulheres sujeito, ultrapassando esse universo estreito. – Pois mesmo quando uma mulher se destaca nas artes, na ciência e na política, não são as revistas femininas que as entrevistam.

E a luta dos LGBs vai além da luta feminista. É a luta para ter direitos iguais (casar com quem quiser, adotar filhos, financiar juntos um imóvel etc.) e para serem protagonistas. Ou seja: o fato de ser ou não penetrada ou penetrado não deve decidir o seu destino como ser submisso ou protagonista. Ou melhor dizendo: ninguém deve ser submisso. E a luta dos transexuais é a luta de lésbicas, gays e bissexuais acrescida da temática T: afirmar uma identidade de gênero que não coincide com a anatomia com a qual nasceu.

E aí tem que ficar bem claro que homossexualidade não é a mesma coisa que transexualidade. Ser heterossexual, homossexual, bissexual ou assexuado diz respeito à sua orientação sexual. Heterossexual é quem deseja indivíduos do outro sexo. Homossexual é quem deseja indivíduos do mesmo sexo. Bissexual é quem deseja indivíduos de ambos os sexos. E assexuado é quem não deseja ter relações sexuais. – Não, o assexuado não é celibatário. Celibatário é quem prometeu não fazer sexo, mas deseja fazê-lo. Aí estão José de Alencar e José do Patrocínio, escritores que eram filhos de padres, para comprovar isso. Os assexuados não desejam fazer sexo. Há até caso de assexuados que se apaixonam e vivem juntos, mas não copulam.

E a identidade de gênero faz de você cisgênero ou transgênero. “Transgênero” é aquele que faz a “travessia”, daí o prefixo “trans-“. João W. Nery é considerado o primeiro transexual brasileiro homem, ou trans-homem. Nascido com uma anatomia feminina, nunca se considerou mulher. Brincava como menino com a irmã, ambos fazendo papéis masculinos. Essa fase passou para sua irmã, mas para ele era com o papel masculino que se identificava. E, vestido como homem, trabalhou como taxista, e todos que entravam em seu táxi o consideravam homem, havendo até prostitutas que davam em cima dele. Por fim, encontrou um médico que, clandestinamente, fez as cirurgias necessárias para livrá-lo dos incômodos femininos: retirou útero e ovários, modelou os seios para um formato másculo. Os hormônios lhe deram barba e engrossaram sua voz. E, por fim, foi a um cartório e disse nunca ter sido registrado, dando a si mesmo uma identidade masculina. Isso ainda antes da redemocratização. Tudo isso é contado no livro “Viagem Solitária”. O mais famoso caso de transexualidade no sentido contrário no Brasil é o de Roberta Close, registrada pelos pais como Luiz Roberto Gambine Moreira, que, em 1989, fez os procedimentos de redesignação sexual na Inglaterra e, entre 1990 e 1997, lutou na Justiça para ter reconhecida oficialmente sua identidade feminina.

Cisgênero são as pessoas que não fazem a travessia: a grande maioria da humanidade, que se identifica com sua anatomia.

Entre os transgêneros há também os não-binários. São pessoas que não se identificam com sua anatomia, mas não se consideram nem masculinos nem femininos.

Então uma pessoa pode ser cisgênero e hétero, ou cisgênero e homossexual, ou cisgênero e bissexual ou cisgênero e assexuado. E o mesmo vale para os trans. Exemplificando: Claudia Raia é cisgênero e heterossexual, pois vive satisfeita com sua anatomia e sempre se relacionou com pessoas do sexo oposto. Jean Wyllys é cisgênero e homossexual, pois deseja pessoas do mesmo sexo. Roberta Close é transgênero e heterossexual, porque sempre se considerou um ser feminino e está casada com um homem cis lá em Zurique, segundo chegou a meus ouvidos. Brad Pitt e Angelina Jolie têm um filho trans. A criança, nascida com órgãos femininos, recebeu o nome de Shiloh, mas como desde os dois anos se declara menino, é agora chamado de John. Um dia saberemos a orientação sexual de John.

Como diz Chico Buarque: “Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado”. Não, a anatomia não nos determina. E é isso que irrita os autoritários, que não suportam perder o controle sobre a vida alheia.


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Edson Amaro De Souza

Edson Amaro perdeu toda e qualquer esperança de ser normal. Paga suas contas lecionando Língua Portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro, delicia-se praticando teatro de vez em quando, comete a imprudência de escrever versos, atreve-se a praticar a arte da tradução e, como se não bastasse, torce pelo Vasco da Gama. Gosta de tomar chá e semear dúvidas.

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14 respostas

  1. Enzo Medeiros Enzo Medeiros disse:

    E também levantaria a bandeira da pedofilia </3

  2. Também levantaria a bandeira da pedofilia e do neonazismo (?) Wtf, página? Qual a próxima, homenagear Che Guevara também?

  3. Sim por que viemos do barro e deus mata por que ama. Somos produtos do acaso. Chola muito quando morrer so vamos virar comida a germes e bactérias.

  4. ela apoia a pedofilia senhor papo de primata ela foi capacho de hitler. TEM COMO TU LARGA SUA MILITÂNCIA ATEU POR UM MINUTO? E ACORDA PRA REALIDADE DESSA IDEOLOGIA MARXISTA. ESSA MULHER NAO REPRESENTA NEM OS GAY E E MUITO MENOS AS MULHERES ( PEGOU MAL )

  5. Vicente Alzir Vicente Alzir disse:

    O que eu pensava na época e o que eles pensavam, já está ultrapassado.

  6. ou seja, o hormem ainda é o homem, só que querendo ser outra coisa. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk. um carro se vê como um trem, mas ainda é um carro. kkkkkkkkkkkk (eu tou só enchendo o saco. nao liguem pra mim). kkkkkkkkkkk

  7. Vale Mathias de Melo. Olha que legal.Leia este texto.

  8. Galera eu posso estar errado , porem , tentar refutar o que ela diz com base no que ela é , não seria um ataque pessoal ( ad hominem ) ? Uma vez que devemos fazer a crítica no argumento em sí , E não em quem faz ? ..

  9. Alisa Nik Alisa Nik disse:

    Só que não né. Quem escreveu esse texto leu o Segundo Sexo? Se a Simone crítica justamente a construção do feminino dentro da sociedade, porque ela iria defender um indivíduo que assume para si todo um estereótipo de feminilidade, porque assim se sente “mulher”. O tornar-se mulher da Simone quer dizer que todo o ideal de mulher é uma construção, assim que você nasce com uma vagina, a sociedade impõe pra você um papel de mulher, vc se torna uma mulher de acordo com o que a sociedade diz que é ser mulher (cabelo longo, maquiagem, salto alto, alguma semelhança com os trans, oi, ou regras de comportamento, falar baixo, saber cozinhar, costurar, etc), sendo que ser mulher basta somente e unicamente nascer com uma VAGINA.

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