Buscar uma vida saudável melhorando os hábitos alimentares é, de longe, uma das promessas mais feitas (e descumpridas) de ano novo. Principalmente após a overdose de pernil com rabanada, um passaporte para brincar de “Game Of Thrones” madrugada afora. Mas como arrependimento não mata, no dia seguinte todos estão se entupindo novamente com o “mexidão” das sobras, que em geral alimentaria um batalhão. Porquinhos, franguinhos (que tomaram muito Whey), boizinhos e aves exóticas estão presentes em fartura nas celebrações em família. Colocar tigela de salpicão sem presunto e ovo de codorna é praticamente um sacrilégio! Frutas são meros adornos de mesa, e a uva passa no arroz é suficiente para bater a cota da “operação verão”.
Não é segredo pra ninguém que o brasileiro está acostumado a consumir muita carne. Afinal, qual a melhor forma de se comemorar algo, senão com um churrasco entre amigos? Por aqui, ficar sem bife por alguns dias é um claro sinônimo de pobreza ou mesquinharia. Não é legal oferecer sopa de legumes para aquela visita inesperada que veio filar o almoço na sua casa – isso pega mal! E a tendência é importarmos esses nossos hábitos para o mundo, devido ao aumento da demanda por proteína animal, puxada principalmente pela ascensão dos mercados na Ásia e na África.
O Brasil tem potencial para suprir boa parte da produção adicional, estimada pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), necessária para atender o crescimento do mercado internacional nos próximos anos. Mas ao menos que você seja um sócio da Friboi, não há tantos motivos assim para um brasileiro comemorar essa notícia. O nosso querido país só é lembrado, neste caso, pela vasta extensão territorial (entenda “tchau Amazônia e Cerrado”) e abundância de recursos hídricos (piadinhas sobre água estão esgotadas).
Atualmente cerca de 20% do território nacional – 174 milhões de hectares – é ocupado por pastagens. Para se ter um parâmetro, toda nossa agricultura utiliza apenas 6% – 50 milhões de hectares. E é preciso colocar nessa conta que cerca de 70% de toda a produção de soja e milho são destinadas ao consumo animal. Um dos negócios mais lucrativos do país, junto com abrir uma franquia da Universal, é vender ração para porco e galinha asiático! Desde 1996, com a criação da Lei Kandir (LC 87/1996), não há cobrança do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para a exportação da soja em grão e de produtos processados. E em 2013, o Governo sancionou a Lei 12.865, que prevê a isenção de 9,25% de PIS/Cofins na venda da soja para todos os fins comerciais. Sim, basicamente é isso que chamamos de Agronegócio! Uma dica: pesquise “Doença Holandesa” no Google, e tire suas conclusões…
Em relação aos recursos hídricos, um dado interessante é que mais da metade da água potável do mundo vai para pecuária. O que inclui produção de carne, leite, ovos, lã, couro, etc., fazendo com que a produção animal consuma até 10 vezes mais dos recursos hídricos do que já é utilizado na agricultura. Um boi bebe em média 70 litros de água por dia (zerando qualquer aplicativo de dieta). Já uma vaca leiteira, pode chegar a beber 140 litros ao dia. Para produzirmos 1 kg de trigo, são utilizados 132 litros de água, 1 kg de arroz consome 2.500 litros e 1 kg de carne nada menos que 17.000 litros de água!
Ok, isso já está parecendo um panfleto vegan. Na verdade, é inegável que esteja levantando a bandeira dos amigos da proteína. Mas não espero, e nem acredito, que todos irão se tornar vegetarianos por conta de meia dúzia de dados. Eu mesmo não sei como viveria sem uma costela com mandioca no final de semana. Bom, a questão é que há alguns anos atrás, discutia-se nas conferências sobre o clima o impacto das mudanças climáticas na agricultura. Agora, a preocupação passou a ser mais social, abrangendo a segurança alimentar: “Estamos criando um novo marco global para lidar com as mudanças climáticas, a segurança alimentar e a pobreza, mas definitivamente todos devemos criar novos padrões localmente”, disse Richard Choularton, chefe da Unidade de Mudanças Climáticas e Segurança Alimentar do Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês).
Focando na comida, o que é consumido apenas pelo gado daria para alimentar 9 bilhões de pessoas. O equivalente a população prevista para 2050. Em outras palavras, facilmente 20 vegetarianos são alimentados com a mesma quantidade de terra necessária para alimentar uma única pessoa com dieta à base de carne. Se pensarmos na conversão das áreas de pasto em floresta, e sua função como sumidouro de CO2, provavelmente a preocupação com o Aquecimento Global seria bem menor.
Quanto maior é a cadeia trófica, mais energia é desperdiçada. Traduzindo: a planta, ou produtor primário, capta energia do sol, sintetiza os nutrientes e disponibiliza, quando muito, 10% dessa energia para o próximo nível, e assim por diante. Quando nos alimentamos do segundo nível, estamos consumindo menos de 1% daquilo que foi captado pelo produtor primário, necessitando de uma área imensa para garantir a variedade na mesa. (A floresta élfica é bem preservada porque não é preciso desmatar nada para criar boi, no máximo deve rolar uma monocultura de babosa.) A pecuária é responsável por cerca de 80% do desmatamento na Amazônia brasileira. É isso mesmo, comer tofu e saborear picles na grelha ajuda a preservar a floresta.
É claro que todos desejam o mundo idealizado das cartilhas de movimentos sociais. Só que a melhor estratégia é “comer pelas beiradas”, ou buscar o equilíbrio. Para a gurizada criada em apartamento, galinha é uma knorr viva. O moleque não vai deixar de pedir para a empregada fritar nugget, para salvar o mundo, não importa quantas fotos de animais mutilados sejam postadas no Facebook. Fica difícil competir com o comercial da Sadia se os clientes não estiverem pré-dispostos a mudar seus hábitos. E esse é o processo longo, de conscientização e educação ambiental da população. Se todos parassem de comprar carro movido a gasolina, no outro mês o motor elétrico baratearia ao custo de dois sacos de pitomba.
Um exemplo de que o “terrorismo” exercido por alguns militantes é contraproducente à causa defendida, e pode até virar um tiro pela culatra em algumas situações, é o mantra que de certa forma é repetido até mesmo pela OMC de que quem come mais carne, e em especial carne vermelha, tem maiores chances de contrair câncer ou sofrer um enfarto. Gary Taubes, um dos mais influentes divulgadores de ciência e correspondente da revista Science, desmistifica no excelente livro “Good Calories, Bad Calories” o senso comum sobre a ingestão de gorduras de origem animal, classificando o medo que sentimos como uma espécie de “imposição dogmática”. Gary lembra que, apesar das inúmeras pesquisas que tentam ligar gordura e doenças cárdicas como um fator de determinante de causa e efeito.
A verdade é que não há provas de que gordura saturada e enfartes estejam tão diretamente ligados como é divulgado. E ainda afirma que a propaganda do governo teve um efeito negativo, contrário ao que se esperava. Segundo o artigo, ao evitar a gordura, a população passou a consumir mais carboidratos e açúcar, para equilibrar a quantidade diária de calorias que o corpo exige e nos cobra com a sensação de fome. Assim a taxa de obesidade nos states subiu de 14% para 22%, sendo a obesidade um grande vilão da saúde e grande fator de risco para doenças cardíacas. Na dúvida, países como a França estão ai para tirar a prova dos nove. No país do apaixonado Pepé Le Pew nenhuma carne é desperdiçada: de lesma a patas de rã tudo é refogado na manteiga, e ainda assim possui uma das menores taxas de morte por ataque cardíaco do mundo. Aliás, no mediterrâneo como um todo, o consumo de carne vermelha aumenta enquanto os índices de doenças cardíacas diminuem.
Algo inegável é que salada faz bem. Uma dieta rica em frutas, legumes e verduras dá pontos de vida e aumenta a barra de energia, e é totalmente possível para qualquer um viver sem carne hoje em dia. Ter uma geladeira e acompanhar blogs de nutrição disponíveis na internet facilitam bastante. Como não somos vegetarianos por natureza, é preciso ter uma preocupação redobrada com o cardápio, para retirar a proteína animal do prato. E é justamente por essa atenção maior com a comida, que vegetarianos tendem a ter uma boa saúde. Fazendo a matemática dos nutrientes, dá para ir no Porcão e até mesmo comer um McLanche de vez em quando sem culpa, e viver feliz por muitos e muitos anos!
O consumo sustentável vai além do não desperdício. Está nas escolhas que fazemos no nosso dia a dia. Uma mudança significativa em nível global, exige um esforço coletivo que deve ser concentrado na forma como educamos nossas crianças e projetamos nossas sociedades. É válida qualquer ação que vise a preservação da natureza e dos ecossistemas. Isto significa, acima de tudo, a preservação das condições favoráveis a manutenção da vida na Terra. Até mesmo porque não sabemos se o Matthew McConaughey estará disponível para achar outro planeta habitável por ai quando precisarmos. Pareceu só mais uma piadinha, mas as grandes navegações foram motivadas pelas especiarias da Índia, nada mais do que tempero para melhorar o gosto da carne (sem freezer já viu, né), e a busca de terras para pasto. Não é à toa que Estados Unidos, Brasil e Argentina tenham alguns dos maiores rebanhos do mundo.
Claro que antes de mandarmos solicitações de Farmville nas próximas Voyagers, seria melhor usarmos a tecnologia disponível para aumentar a produção de carne, diminuindo as áreas de pastagem e ainda melhorando o bem estar do animal. Algo totalmente possível, vide os resultados de um projeto piloto em Paragominas que rendeu uma bela reportagem no Globo Rural. Comer ou não comer carne pode ser uma escolha pessoal, religiosa, financeira, moral ou ambiental. Independentemente de qual for a sua opção, estar bem informado é imprescindível para defender o seu posicionamento. Sem alardes e com uma conversa muito instrutiva, uma amiga me motivou a repensar minha dieta Fast-Food com carne dupla. O bom papo rendeu a pesquisa feita para esse texto e uma promessa de ano novo que pretendo cumprir: diminuir o consumo de carne a quatro dias na semana!
Referências:
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística); ‘Produção Animal no 3º Trimestre de 2011′; <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/agropecuaria/producaoagropecuaria/abate-leite-couro-ovos_201103comentarios.pdf>
FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations); ‘Livestock’s Long Shadow’;2006; <http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00>
UNDP – United Nations Development Programme; ‘El Agua, Un Derecho en un Mundo Desigual’; 2007; http://hdr.undp.org/en/media/water_rights_and_wrongs_espanol.pdf
Aprosoja; ‘Os Usos da Soja’; <http://www.aprosoja.com.br/sobre-a-soja/Paginas/Os-usos-da-Soja.aspx>
Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária); ‘Cultivo do Milho’; 09/2011; http://sistemasdeproducao.cnptia.embrapa.br/FontesHTML/Milho/CultivodoMilho_7ed/economia.htm
Good Calories, Bad Calories: Fats, Carbs, and the Controversial Science of Diet and Health by Gary Taubes (2007).
IMAZON – Instituto do Homem e Meio Ambiente na Amazônia; ‘A Pecuária e o Desmatamento na Amazônia em Relação às Mudanças Climáticas.’; 2008; http://www.imazon.org.br/novo2008/arquivosdb/120849pecuaria_mudancas_climaticas.pdf
Época; ‘Paul Roberts – “Em 2050, seremos todos vegetarianos”‘; 12/06/2008; http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/