A quem interessa a escuridão? (O Estado contra Bertrand Russell)


por Caio Nascimento

Bertrand Russell (1872-1970) é considerado um dos maiores filósofos do século XX. Durante sua vida ocupou-se em tratar de assuntos espinhosos para a época em que viveu, retratando a necessidade da flexibilização dos códigos morais dogmáticos pautados nos mitos religiosos em nome de uma nova moral emergente naquele momento.

Pacifista declarado, Russell tratara em suas inúmeras obras sobre diversos assuntos, entre eles o casamento, a vida sexual das pessoas solteiras, a emancipação das mulheres e da imoralidade presente nas leis que condenavam a liberdade dos indivíduos (entre eles a homossexualidade, tratada naquela época por “homossexualismo”). Tais posturas, em conjunto com seu ateísmo declarado e militante, renderam diversos embates e perseguições promovidos tanto na Europa quanto nas Américas e, neste texto falaremos sobre um dos mais famosos casos: o da College of The City of New York.

Na década de 40, por ocasião a da aposentadoria de dois professores de filosofia desta instituição, os membros da administração da universidade em conjunto com os membros do departamento de filosofia concordaram em convidar o eminente Bertrand Russell para compor seu corpo docente, uma vez que o mesmo encontrava-se ministrando aulas na Universidade da Califórnia. O comitê de educação e o reitor da faculdade acataram a decisão com entusiasmo e enviaram uma carta solicitando os serviços de Russell de 1 de Fevereiro de 1941 até 30 de Junho de 1942. Tudo parecia correr bem, uma vez que Russell aceitara imediatamente a proposta.

William T. Manning

William T. Manning

No entanto, após a comunicação da nomeação de Russell para o cargo tornar-se pública, Manning, um bispo da igreja episcopal protestante iniciou uma furiosa campanha de difamação. O mesmo atentava contra a idoneidade de Russell afirmando que o filósofo era a favor do adultério, da homossexualidade e um propagandista do paganismo. As acusações do bispo foram levadas a sério por diversos jornais conservadores e até mesmo por outros liberais, e os ataques continuaram escarnecendo de Russell na tentativa de boicotar sua nomeação para o posto na faculdade de Nova York. Dos mais cínicos para os mais escrachados, as ofensas brotavam em veículos de comunicação sem qualquer fundamentação racional e ficava cada vez mais evidente de que a maior agressão a moral destas pessoas residia no ateísmo de Russell, que permaneceu em silencio durante boa parte do tempo em que se seguiram os ataques a sua pessoa, exceto em uma curta nota divulgada logo após o início da campanha: “não tenho desejo de responder ao ataque do bispo Manning (…). Qualquer pessoa que na juventude decida tanto falar quanto pensar com honestidade, independentemente da hostilidade e das interpretações errôneas, espera tais ataques e logo aprende que o melhor é ignorá-los” (grifo de Paul Edwards, no apêndice do livro “Por que não sou cristão”, lançado originalmente em 1957).

O conflito com o bispo Manning e com a mídia norte-americana fora apenas o primeiro round desta luta que partiria para os tribunais, pois logo a sra. Jean Kay (que jamais obtivera nenhum destaque na vida pública antes do momento a ser citado) preencheu um formulário de queixa de contribuinte na Suprema Corte de Nova York na tentativa de anular a nomeação de Russell, alegando que o mesmo seria um defensor da imoralidade sexual, além de ser estrangeiro. A sra. Kay fora representada por um ardiloso advogado chamado Joseph Goldstein, que acusou Russell de coordenar uma colônia de nudismo na Inglaterra, de assentir com o “homossexualismo” e de não passar de um sofista dissimulado (de onde Goldstein extraiu estas informações, nunca saberemos).

Com a indicação dos livros “A Educação e a Boa Vida” (1926), “Casamento e Moral” (1929), “Educação e o Mundo Moderno” (1932) e “No que acredito” (1925) para suportar suas acusações, Goldstein conseguiu a atenção do Juiz McGheen, que acatou a denúncia 2 dias depois, vendo nas obras (que provavelmente não teve tempo de ler) as evidências necessárias para dar prosseguimento a inquisição de Russell. Os motivos citados pelo juiz variavam apenas em grau de absurdo, uma vez que acusava Russell de libertinagem, imoralidade, apologia ao estupro, a pedofilia, ao “crime de homossexualismo” e até mesmo de comunismo confesso (o mais interessante nesta última acusação era que Russell fazia uma oposição forte e direta à doutrina comunista). Segundo Edwards (1957), ficava visível que “a fúria e a ira divina tomaram conta da questão de maneira incontestável” (pg. 220).

O prosseguimento do processo não poderia ser diferente e Russell foi impedido de ministrar suas aulas na faculdade de Nova York, o que gerou uma movimentação semelhante por parte do ex-ministro religioso, I.R. Wall, que entrou com um mandato de proibição referente a posição de Russell da Universidade da Califórnia. Felizmente, neste caso, a denúncia foi considerada improcedente e arquivada em seguida. Quanto ao filósofo, uma nota fora publicada no The New York Times, dizendo o mesmo deveria ter declinado a solicitação da faculdade assim que os efeitos danosos da mesma começaram a se apresentar. A isso, Russell respondeu em uma carta publicada na edição do dia 26 de Abril daquele ano:

“Espero que me permitam comentar as referências feitas por este jornal à controvérsia originada pela minha indicação à Faculdade de Nova York e, particularmente, a respeito da opinião de que eu ‘deveria ter demonstrado sabedoria de recusar (…) assim que seus resultados danosos se tornaram evidentes’.

17th June 1957, British mathematician and philosopher Bertrand Russell (1872 - 1970). (Photo by John Drysdale/Keystone/Getty Images)

Bertrand Russell (1872 – 1970).

Em certo sentido, essa teria sido a atitude mais sábia. Certamente teria sido bem mais prudente, na medida e que se consideram meus interesses pessoais, e muito mais agradável. Se eu tivesse considerado meus próprios interesses e inclinações, deveria ter me retirado imediatamente. Mas por mais prudente que tal ação pudesse ter sido do ponto de vista pessoal, também teria sido, a meu ver, um ato covarde e egoísta. Um grande número de pessoas que perceberam que seus próprios interesses e os princípios da tolerância e

da liberdade de expressão estavam ameaçados ficaram ansiosas, desde o início, para dar continuidade à controvérsia. Se eu tivesse me retirado, teria privado as pessoas de seu casus belli e teria aceitado tacitamente a proposta da oposição de que grupos importantes devem ter permissão de afastar de cargos públicos pessoas cujas opiniões, raça ou nacionalidade julguem repugnantes. Isso, para mim, pareceria imoral.

Foi meu avô quem causou a revogação do English Test and Corporate Acts, que impedia que qualquer pessoa que não fosse membro da Igreja da Inglaterra, da qual ele próprio era membro, ocupasse um cargo público, e uma de minhas lembranças mais antigas e mais importantes é de uma representação de integrantes da Igreja Metodista comemorando em baixo da janela dele no 50º aniversário dessa revogação, apesar de o maior grupo afetado individualmente tenha sido o dos católicos.

Não acredito que, de maneira geral, a controvérsia seja danosa. Não são as controvérsias e as diferenças abertas que ameaçam a democracia. Ao contrário, essas são suas maiores salvaguardas. É parte essencial da democracia que grupos importantes, mesmo maiorias, entendam a tolerância a grupos dissidentes, por menores que sejam e por mais que sintam seus sentimentos ultrajados.

Em uma democracia, é necessário que as pessoas aprendam a suportar que seus sentimentos sejam ultrajados (…)”.
(reprodução de Paul Edwards (1957), traduzida para o português por Ana Ban)

A patética medida adotada em Nova York não fora levada a sério em outras instituições dos Estados Unidos e, após a Califórnia, Russell seguiu para Harvard, onde suas aulas seguiram sem qualquer incidente. Em 1944 retornou para a Inglaterra e anos mais tarde o Rei George VI lhe conferiu a Ordem do Mérito. Já em 1950, o filósofo foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura.

A saga do caso “o Estado contra Russell” diz mais do que aparenta. É uma história sobre intolerância e soberba promovida pela histórica reverência aos ultrapassados e por vezes imorais valores promovidos pelas religiões e, parafraseando a defesa de Einstein a Russell, como grandes espíritos sempre encontram forte oposição das mediocridades. Basta ler algumas obras do autor para que se compreenda seus pensamentos, ideais e lutas, e todos atacam justamente a base de uma cadeia de poder historicamente estabelecida pela ascensão dos dogmas religiosos enquanto supostos imputadores da retidão moral – e isto é algo intolerável para aqueles que vivem da defesa destes mesmos dogmas!

A obra de Russell trata a religião em pés de justiça histórica, atribuindo a ela seu devido espaço na antropologia das civilizações. Entretanto, mantem-se combativo ao afirmar que “a questão da verdade de uma religião é uma coisa, mas a questão de sua utilidade é outra. Tenho a mesma firme convicção de que as religiões fazem mal, assim como acredito que não sejam verdadeiras” (1957. p. 24). Russell (1935) afirma ainda que as crenças religiosas divergem das teorias científicas ao alegarem a incorporação de uma verdade eterna (p.6), ao passo que a ciência é sempre experimental e busca a modificação e atualização de suas teorias atuais. Entretanto, não é raro que vejamos pelas redes críticas ao ateísmo de Russell (normalmente sem qualquer fundamento baseado em suas obras, mas em especulações sobre sua vida pessoal, assim como as apontadas por Goldstein no julgamento citado anteriormente).

Mas, se a religião pressupõe, como afirma Russell, “verdades eternas”, no que residia o ódio que movia a campanha de difamação promovida pelo bispo Manning? Quão temeroso poderia ser um homem que diz possuir a imutável verdade de um criador benevolente? Vimos que aparentemente uma coisa não consegue anular a outra e isto se dá porque aqueles que suportam a influência política da religião, tanto quanto aqueles que a praticam em seus templos, necessitam da falsa ideia da escuridão para suportar suas crenças e incutir o medo em seus fiéis para que assim a chama dos mitos não seja extinta. Ataques como estes e tantos outros antes e depois de Russell demonstram como funciona o pensamento do dogmata insidioso: “se você não está disposto a acreditar em mim, você deve ser calado a todo custo” (reminiscências de uma Inquisição não tão distante).

burning_candle_by_barteklauri-d4n0zv0A religião outrora fora uma vela que iluminava os homens sob a escuridão e o medo, mas com o passar das eras, torna-se cada vez mais sem sentido caminhar sob o sol munido da mesma (exceto, é claro, para aqueles que tem por profissão de fé internalizar em seus seguidores medo de uma escuridão perseguidora). A escuridão interessa àqueles que temem o conhecimento e tudo aquilo que ele traz consigo, especialmente a destituição do irracionalismo e do obscurantismo e, para isso, valem-se da depreciação do mesmo. Sobre isso, Russell (1957) diz que: “a inteligência, pode-se dizer, causou nossos problemas; mas não é a desinteligência que irá curá-los” (p.198), defendendo e resumindo sua postura filosófica e política de que “o que o mundo precisa não é de dogma, mas de uma atitude de investigação científica, combinada à crença de que a tortura de milhões de pessoas não é desejável, seja ela infligida por Stalin ou por uma Divindade imaginada à semelhança dos que acreditam” (p.200).

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Referências:

RUSSELL, Bertrand (1916). Por que os homens vão à guerra. Tradução de PRELORENTZOU, Renato. – I ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2014;

RUSSELL, Bertrand (1925). No que acredito. Tradução de VIEIRA, André Godoy. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2007;

RUSSELL, Bertrand (1926). Sobre a educação. Tradução de PRELORENTZOU, Renato. – I ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2014;

RUSSELL, Bertrand (1928). Ensaios céticos. Tradução de MOTTA, Marisa; prefácio de Gray, John. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2014;

RUSSELL, Bertrand (1929). Casamento e moral. Tradução de SANTOS, Fernando. – I ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2015;

RUSSELL, Bertrand (1935). Religião e ciência. Tradução de FIGUEIREDO, Maria Cecília, VIEIRA, Valéria de Fátima e AFONSO, Iulo Feliciano; prefácio de RUSE, Michael – Ribeirão Preto, SP: FUNPEC Editora, 2009;

RUSSELL, Bertrand (1950). The Autobiography of Bertrand Russell; Routledge Classics series;  Routledge; 1 edition (August 13, 2009); ISBN-10: 041547373X

RUSSELL, Bertrand (1957). Por que não sou cristão. Tradução de BAN, Ana; prefácio de BLACKBURN, Simon – Porto Alegre, RS: L&PM, 2016;

Discussão sobre o caso Bertrand Russell publicado em Maio de 1940 na Harvard Law Review pela The Harvard Law Review Association:
https://www.jstor.org/stable/1333550


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