Opinião: TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA


TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA: POR OCASIÃO DA MORTE DE JEAN CALAS
(Traité sur la Tolérance: a l’occasion de la mort de Jean Calas)
Voltaire, 1763

Na noite de 13 de outubro de 1761, o jovem Marc-Antonie Calas, de 29 anos, é encontrado morto em sua residência, na cidade Francesa de Toulouse. O corpo foi descoberto pelo seu irmão caçula e um amigo, que ali jantara naquela noite. Apesar de todas as evidências indicarem um suicídio, um boato não tarda a surgir: Marc-Antonie, que iria converter-se ao catolicismo, teria sido vítima de um complô arquitetado pela sua família, cujos membros protestantes não teriam aceitado sua decisão de mudança religiosa. Toda a família Calas é, então, encarcerada: seus pais e seu irmão, além da velha criada da casa e do amigo que tivera a infelicidade de estar na casa naquela noite fatídica. Dali a alguns meses, em 9 de março, o tribunal condena Jean Calas, o pai do falecido, à morte. Antes de sua execução, o comerciante é torturado em praça pública, na esperança de que confessasse. Mais de 18 litros de água são entornados em sua garganta. Em seguida, ele é supliciado durante horas na roda, onde seus braços e pernas são esticados até soltarem-se das juntas, para então terem seus ossos esmagados por golpes de uma pesada barra de metal desferida pelo carrasco. A despeito de toda esta tortura, contudo, Jean Calas declara-se inocente até o final. Ele é finalmente estrangulado e seus restos são atirados em uma enorme fogueira.

François Marie Arouet era então um escritor conhecido por suas obras revolucionárias e sua escrita afiada. Popular pela sua sagacidade e pelo seu indomável espírito rebelde, seu sucesso era inversamente proporcional à sua reputação. Acumulava alguns escândalos amorosos e vários problemas com as autoridades, tendo sido preso e exilado várias vezes. Mas era razoavelmente rico, de forma que podia transitar pela aristocracia francesa e cultivar amigos influentes – embora tenha, obviamente, feito vários desafetos na alta classe. Já tendo passado dos 60 anos, no entanto, dedicava boa parte do tempo e das energias na tarefa de ajudar pessoas perseguidas injustamente.

Quis o destino, então, que ele tomasse conhecimento do caso Calas, quando o velho Jean ainda encontrava-se encarcerado. Dadas as inúmeras evidências de que o réu havia sido preso injustamente, iniciou uma campanha para inocentá-lo e livrá-lo do cadafalso, mas fracassou neste intento. Decidiu então lançar-se na missão de inocentar o restante da família e de limpar o nome de Jean Calas. A luta geraria um libelo contra a iniquidade e a intolerância religiosa: um livro que atravessa os séculos sendo considerado um dos maiores testemunhos dos males que o fanatismo e a incompreensão podem causar. Seu autor foi um dos maiores filósofos iluministas de todos os tempos, muito embora Arouet não seja tão conhecido pelo seu nome real, mas pela alcunha que escolhera para publicar seus textos: Voltaire!

Em “TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA”, escrito pouco tempo depois da execução de Calas, Voltaire faz um apelo veemente em prol da tolerância religiosa. Critica duramente a arrogância típica da religião, que trata seus dogmas como sagrados e obrigatórios, enquanto consideram todos aqueles que não os seguem como pecadores ou mesmo inimigos do seu credo. E revela o óbvio: a intolerância mútua não pode levar à nada que não seja à completa destruição!

“Caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; o mongol arrancaria o coração do primeiro indiano que encontrasse; o indiano poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco – e todos juntos se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo devoraram-se uns aos outros.”, ele brada, pena em punho, com verve ferina e lucidez impressionante.

Dono de um estilo crítico e de uma aguçada ironia, Voltaire discorre sobre as reformas religiosas e os horrores perpetrados sempre que os adeptos de uma crença decidem impô-la a ferro e a fogo aos infiéis. Não poupa fundamentalistas católicos, protestantes ou de quaisquer vertentes religiosas. Denuncia casos de assassinatos motivados por intolerância ou estratégias para garantir a supremacia religiosa, revelando nomes e cargos políticos e eclesiásticos. Se já tinha uma quantidade razoável de inimigos naquela época, Voltaire não pareceu temer aumentá-la neste ensaio!

O autor disserta sobre a natureza da intolerância, fazendo o leitor refletir se o homem civilizado ainda pode reivindicar o direito de exercê-la. Para tanto, utiliza-se do contexto histórico e compara a sociedade moderna (na sua época) a culturas antigas, utilizando-se em alguns momentos de metáforas ou estórias para ilustrar os riscos da intolerância, e de como mitigá-los. Em outros momentos, é categórico, apontando problemas em casos concretos.

Como o de Jean Calas. E, neste sentido, “TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA” triunfa sobre a iniquidade, ajudando a atenuar a tragédia que se abateu sobre a sua família. Seu manifesto espalhou-se pela sociedade francesa, revelando a arbitrariedade da execução do comerciante e da injustiça cometida com seus familiares. Pressionado pela opinião pública, o governo francês avaliou o caso, e o próprio Rei aprovou um novo julgamento. Assim, os magistrados da Casa Real deliberaram que os juízes de Toulouse erraram tanto na forma como no resultado do seu veredito, agindo de forma inapta e abusiva. Desta forma, a família Calas foi totalmente inocentada da morte de Marc-Antonie, finalmente admitida oficialmente como suicídio, e a memória de seu pai foi reabilitada. Ao parlamento de Toulouse foi ainda imposto custear as despesas, os danos e as indenizações referentes ao sofrimento da família. Uma multidão ovacionou como grande alegria os Calas na saída do tribunal, em Paris, exatos três anos depois do suplício de Jean calas.

Que não se pense, contudo, que o próprio Voltaire estava a salvo da intolerância. O filósofo iluminista era um homem do seu tempo. Sendo ele mesmo um deísta que acreditava ser a religião fundamental para a sociedade, ele demonstra em certos momentos de “TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA” claro preconceito com ateus, a quem desprezava. No entanto, isto não torna sua luta contra a intolerância menos construtiva, muito pelo contrário. Pois é uma lição a qual devemos nos atentar: se mesmo um homem como ele, notável pela luta pela igualdade, foi incapaz de extinguir completamente a intolerância do seu espírito, temos então que ficar ainda mais atentos, pois a luta é intensa e incerta, e o inimigo, traiçoeiro!

Nota 10


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2 respostas

  1. Daniel de Paula Ferreira e Medeiros disse:

    Excelente indicação literária. Eu mesmo sou graduado em Direito e nunca ouvi falar sobre essa obra de Voltaire. Um verdadeiro antídoto para os tempos de intolerância que até hoje nos assombra. Excelente, também, foi a resenha feita por esse site. Abraços a todos !

  2. marceloDC disse:

    Quando se diz de pessoas e no que são (LGBTs, gênero…), é questão de respeito, nada de mera “tolerãncia”. Agora ideais, em particular religião, Deus, deuses, esoterismos, Jesus Cristo, sistemas políticos… é questão de tolerância, inclusive por ser SEMPRE opções, escolhas e serem por natureza geradoras de conflitos. Respeito só seria da pessoa, como adulta, ter suas crenças, desde que não interfira nos direitos das outras e no que são.

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