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1932: Voto feminino contra o estado laico


Costumo sempre dizer em sala de aula que o lugar mais importante de qualquer escola é a biblioteca – lá se exercita de fato a liberdade de pensamento e de pesquisa e lá aqueles que serão a vanguarda de cada geração encontrarão as informações que a escola lhes sonega!

Querem exemplos? Direitos que fazem parte do nosso cotidiano foram muito recentemente adquiridos e os livros escolares de História nada falam sobre como essas liberdades são recentes, passando a falsa impressão, gerada pelo silêncio, de que esses direitos sempre existiram.

É lendo a Literatura que realmente entendemos o que é a História: muito mais que a sucessão de reis e presidentes com guerras e terremotos quebrando a monotonia. Foi lendo Jorge Amado que eu soube que a liberdade religiosa foi conquistada há poucas décadas: em “Capitães da Areia”, que li quando tinha 14 anos, soube que a polícia invadia terreiros, prendia pessoas, agredia os fiéis e confiscava as imagens. Até hoje, no Rio de Janeiro, há um conflito entre as autoridades constituídas e os seguidores dos cultos afro-brasileiros por conta disso:  no Museu da Polícia, situado na Rua da Relação, 40 (eu só consigo lembrar o endereço porque a palavra “relação” me lembra “delação”), prédio em que funcionou o DOPS nos tempos da ditadura militar e que grupos defensores dos Direitos Humanos querem transformar em Museu da Resistência, estão guardadas imagens de orixás, apreendidas antes da Constituição de 1946 (aquela em que o deputado constituinte Jorge Amado garantiu a liberdade de credo), cujos devotos querem que o governo estadual devolva aos terreiros de onde foram tiradas. Foi lendo “Éramos Seis”, de Maria José Dupré, “Tieta do Agreste”, do mesmo Jorge Amado, que eu soube que quando eu nasci o divórcio não existia no Brasil. Já usei mesmo, numa aula de Língua Portuguesa, uma página do “Diário da Manhã”, de Josué Montello, na qual o grande romancista maranhense conta o seu segundo casamento, realizado no Consulado do México, porque, desquitado, não tinha o direito de se casar pela segunda vez perante o Estado brasileiro.

É sobretudo lendo as biografias que entendemos as transformações sociais e culturais. “O Anjo Pornográfico”, por exemplo, biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro, é leitura indispensável para quem se interessa por jornalismo, futebol e teatro. Ali estão as transformações pelas quais passaram os principais veículos da imprensa no século XX, a campanha pela profissionalização do futebol e a revolução no teatro brasileiro iniciada com a primeira montagem de “Vestido de Noiva”.

Neste momento, leio “Rubem Braga – Um Cigano Fazendeiro do Ar”, de Marco Antonio de Carvalho (Editora Globo). Rubem Braga, o mais célebre cronista brasileiro, de quem ouvimos dizer, falsamente, que nunca escreveu outro gênero além da crônica (ele cometeu alguns poemas sem sucesso), era ateu assumido e fez do seu jornalismo e da sua literatura trincheiras contra o autoritarismo católico. E uma página em particular, que tratava sobre o passado recente da nossa democracia, deixou-me perplexo!

Getúlio Vargas, a quem vários jornalistas e historiadores declaram agnóstico (a memória não me permite agora citar alguma obra em que essa informação é registrada, mas leiam biografias que o tenham como protagonista, antagonista ou coadjuvante e vocês encontraram vários autores que assim o declaram), chegou ao poder em 1930 pelas armas, governou sem uma Constituição e, para melhor assegurar-se, aliou-se à Igreja Católica. Permitiu assim que, apesar dos protestos de ilustres educadores como Anísio Teixeira e Cecília Meireles, fossem instituídas aulas de religião na escola pública. Contra os defensores do ensino laico, a Igreja lançava a acusação de serem comunistas embora, nos casos específicos de Anísio e de Cecília, isso estivesse longe de ser verdade.

Recentemente, o filme “As Sufragistas” lembrou ao mundo a luta das mulheres da Inglaterra para terem direito ao voto, o que conquistaram em 1928. Na França, elas só puderam votar em 1948. No Brasil, tal direito foi dado a elas em 1932, como parte da aliança entre Getúlio e a Igreja Católica, pois, como no Brasil as mulheres não tinham a mesma organização política e sindical, a mesma Igreja que até hoje nega às mulheres o direito de celebrar a missa, como se ter um pênis fizesse alguma diferença no momento de consagrar uma hóstia (coisa que ministras anglicanas e luteranas fazem tão bem quanto qualquer homem), exigiu que o caudilho lhes desse esse direito com o fim de que elas votassem conforme os interesses do clero que as catequizava.votofeminino

Jamais tinha lido um outro autor fazer tal análise do reconhecimento do voto feminino no Brasil. Esta página já vale o livro todo!

Fica então demonstrado mais uma vez que nós, que defendemos o Estado laico, não podemos fingir neutralidade política pois, se nos calarmos, os fundamentalistas aproveitarão para agir sem contestação!


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Edson Amaro De Souza

Edson Amaro perdeu toda e qualquer esperança de ser normal. Paga suas contas lecionando Língua Portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro, delicia-se praticando teatro de vez em quando, comete a imprudência de escrever versos, atreve-se a praticar a arte da tradução e, como se não bastasse, torce pelo Vasco da Gama. Gosta de tomar chá e semear dúvidas.

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4 respostas

  1. Mas então a igreja Católica contribuiu para a conquista deste direito básico para as mulheres, dizer que as mulheres eram doutrinadas mais que os homens naquela época é um pouco de preconceito. Quanto a questão das mulheres celebrando missas creio que é uma questão intra religião que diz respeito apenas aos seguidores, como não sou religioso não acho correto me intrometer nessa discussão.

  2. Religião e cristianismo é para escravo! Por isso a mentalidade brasileira, de implorar por um Tirano.

  3. Falou em religião… Já lembra mentalidade de escravo… Vejam o “experimento da obediência” e o “experimento sociedade”, ambos estão acontecendo nesse momento, em todo a Terra… Tem gente que até acredita em países, e mal sabe que a Terra não tem rótulo… As pessoas estão na Matrix do sistema.

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