Opinião: QUEBRANDO O ENCANTO


QUEBRANDO O ENCANTO: A RELIGIÃO COMO FENÔMENO NATURAL
(Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon)
Daniel C. Dennett, 2006

Qual seria a melhor definição de religião? Por que a religiosidade parece estar tão intrinsicamente ligada à cultura humana, tendo surgido em praticamente todas as sociedades e influenciando tão fortemente o zeitgeist da humanidade em todos os momentos da nossa história? Sem a religião, seríamos menos felizes? Ou menos éticos?

Daniel Dennett, filósofo naturalista mundialmente conhecido pelas suas teorias da filosofia da mente, é um dos mais proeminentes ateus da atualidade e é integrante do grupo denominado “Os Quatro Cavaleiros do Ateísmo” (juntamente com Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Sam Harris). Dos quatro, sem dúvida é o que aborda o assunto da religião de forma mais serena e branda. Engana-se, contudo, quem imagina que encontrará em sua forma plácida de tratar o assunto alguém menos disposto a combater a religião institucionalizada e os males que ela causa à humanidade. Em “Quebrando O Encanto”, Dennett eviscera as crenças religiosas em busca de respostas às questões que os fiéis recusam-se a discutir e convida o leitor a acompanhá-lo no exame minucioso destas entranhas. Imune ao receio ou ao desconforto de debater tabus normalmente evitados quando se lida com a fé alheia, ele analisa fria e sistematicamente as razões pelas quais as religiões disseminaram-se pelos quatro cantos do globo, tornando-se tão caras aos seus fiéis. Eleva a discussão a outro nível, fazendo perguntas incômodas (tentando responder algumas) e provocando a discussão sobre se a religião, no fim das contas, causa mais mal ou bem.

A motivação da obra é clara. Dennett não nega que a religião é um dos fatores que mais influenciam os rumos da humanidade. Reunindo bilhões de fiéis ao redor do mundo, com diferentes níveis de submissão aos dogmas presentes em suas crenças (de teístas pouco convictos a fundamentalistas prontos para morrer – ou matar – em nome de seus credos), as religiões determinam o modo de vida de grande parte da humanidade, afetando o futuro de nações e movimentando um mercado bilionário. Distintas de qualquer outro forma empreendimento humano por estarem envoltas nas brumas do sagrado, as religiões blindam-se e investem maciçamente em se manterem inquestionáveis. Nada tão poderoso pode ser ignorado! E o objetivo de Dennett é estudar este fenômeno.

Embora o filósofo tenha se especializado em estudar a biologia evolutiva sob a luz da filosofia, sua abordagem não é a de que a religiosidade é inata ao ser humano. Muito pelo contrário! Dennet não vê qualquer programação biológica para criarmos complexos sistemas de crenças, buscando na memética a solução para o comportamento religioso. Alçando mão do conceito de memes (sugerido por Richard Dawkins), ele defende que em algum momento do nosso processo evolutivo, o meme religioso surgiu – e desapareceria como tantos outros, caso não tivesse se tornado um parasita cultural que é passado geração a geração, replicando-se de forma tão eficiente quanto os mais bem sucedidos genes. Tal qual um vírus, o meme religioso adapta-se com o passar do tempo, criando e aperfeiçoando as suas defesas para manter-se existindo e proliferando-se às custas de seus hospedeiros, que passam a vê-lo como partes indissociáveis de sua própria existência. Um fenômeno natural (como dito no título), mas nem por isto menos extrínsico a nós.

Um trecho interessante do livro no qual o autor se detém por algum tempo é aquele onde Dennett trata sobre a dificuldade enfrentada por vários autores em conceituar religião, mostrando o problema que tem em mãos (como investigar algo cujas características e limites não encontram consenso entre os pesquisadores?), chegando a propor uma definição própria: uma religião seria um sistema social cujos participantes confessam a crença em um agente ou agentes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam. Partindo deste ponto, ele tenta compreender como e por que as crenças inspiram devoção absoluta – e o que resulta desta veneração extrema.

Dennett possui grande talento para capturar o leitor, com sua forma descomplicada e bem humorada de tratar de temas filosóficos relativamente complexos. Produz um ensaio envolvente, permeado de referências culturais e filosóficas que vão de StarWars a David Hume, dando ao leitor a sensação de ter uma aula agradável com um bom e paciente professor. Desta forma, progressivamente vai explicando a história e evolução das religiões, dos seus primeiros dias à atualidade, bem como o surgimento do conceito que chama de “crença na crença” (a especulação de que crer em algo seria bom por si só, independentemente deste algo ser real ou não), e num crescente quase imperceptível avança para temas mais profundos, como o questionamento das supostas vantagens inalienáveis da religião, como a moralidade e a felicidade.

O livro não é feito exclusivamente para irreligiosos – embora sejam necessárias honestidade intelectual e coragem para colocar seus próprios valores religiosos em questão e dissecá-los. Pode-se entender isto como um teste de fé, sobretudo se for possível mantê-la mesmo depois de constatar que, fisiologicamente, suas crenças não se diferem tanto assim das demais. Dennett faz uma analogia interessante para explicar ao leitor religioso porque ele deve questionar sua própria fé, supondo uma situação onde a música (uma de suas maiores paixões) fosse alvo de estudos que demonstrassem que ela causa algum tipo de mal. Por mais que este estudo lhe parecesse uma enorme bobagem, ele sentiria-se moralmente obrigado a examinar as provas, tão desapaixonadamente quanto pudesse. Esta capacidade de análise crítica e de distanciamento emocional é o mínimo exigido para um religioso que queria debater suas crenças de forma franca.

E, neste espírito, leva o leitor a se perguntar: será que tratar deste tema poderia de alguma forma “quebrar o encanto”? Será que a religiosidade não depende de um certo nível de mistério e impenetrabilidade para existir e manter sua atração para grande parte da humanidade? Uma análise tão exaustiva e invasiva não poderia “danificar” o fenômeno? Dennett confessa que não sabe. Mas insiste que não temos desculpa para deixar de examiná-lo – até porque, se alguma religião for realmente a detentora de toda a verdade, seus fiéis só tem a ganhar com a investigação. E também deveriam ser eles os mais interessados em saber se o caminho que escolheram é o correto.

Deixar-se investigar faz parte do éthos de qualquer área de empreendimento humano, não tendo nenhuma o direito de ser imperscrutável. Se alguma destas recusa-se a ser analisada, alegando dependência da obscuridade e da incerteza para se manter viva, então que se quebre o encanto!

Nota 10


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1 resposta

  1. 30 de janeiro de 2015

    […] para a temática ateísta: QUEBRANDO O ENCANTO: A RELIGIÃO COMO FENÔMENO NATURAL (Clique aqui para ler a […]

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