Ch de Dvidas

Campanha da Fraternidade: virtudes e limitações


A Quaresma é o período que vai da Quarta-Feira de Cinzas ao Domingo de Ramos, mais ou menos 40 dias nos quais a Igreja Católica recomenda aos fiéis que reflitam sobre o mistério da morte, que aguarda a todos – problema cuja solução, diz a Igreja, foi proporcionada pelo sacrifício de Cristo, que abriu caminho para a ressurreição – “Creio na ressurreição da carne”, diz uma das frases do “Credo”, rezado em todas as missas após a homilia (o comentário do Evangelho feito pelo padre).

Desde 1964, por sugestão de D. Eugênio Salles, um clérigo pelo qual nunca nutri qualquer simpatia (lembro que, em 1996, escrevi-lhe uma carta desaforada como resposta a um artigo que ele publicou na sua coluna semanal em O GLOBO: “O avanço da pornografia”, em que dizia horrores sobre professoras que ensinaram adolescentes a usarem preservativos), instituiu-se a Campanha da Fraternidade, sempre desenvolvida no tempo da Quaresma. De 1964 a 1972, a Campanha da Fraternidade levou os fiéis a meditarem sobre assuntos internos da Igreja e da fé católica. A partir de 1973, os fiéis foram instados a olharem menos para o Céu e mais para a Terra. Temas de importância social e comunitária têm norteado a Campanha. Por exemplo, a questão da Saúde pública foi tema das campanhas de 1981 e 2012. A Educação foi o tema das campanhas de 1982 e 1998. Os povos indígenas foram o tema de 2002 e a Amazônia, o tema de 2007.

Confesso que todo ano, sem falta, na quinta-feira após as cinzas, eu corro a uma livraria católica para comprar o livrinho com o texto-base da Campanha. A CNBB sabe falar muito bem de tudo o que não envolva sexo. Querem ver um exemplo? Veja o que a CNBB escreveu no texto-base de 2012, cujo tema era “Que a saúde se difunda sobre a Terra”, sobre a epidemia de AIDS:

“Segundo dados do Boletim Epidemiológico AIDS a tendência é de queda na incidência de casos em crianças menores de cinco anos. Considerando o período entre os anos de 1999e 2009, a redução chegou a 44,4%. O resultado confirma a eficácia da política de redução de transmissão vertical do HIV (da mãe para o bebê) e outras medidas de prevenção, como a ampliação do diagnóstico do HIV/AIDS, já que as pessoas que conhecem a sua sorologia podem se tratar para evitar novas infecções.” (Campanha da fraternidade 2012: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2011, pág. 38.)

Como vemos no parágrafo acima, a CNBB se recusa a mencionar que uma das medidas mais necessárias contra a epidemia de AIDS é a distribuição de preservativos pela rede pública de saúde. Não se fala de métodos anticoncepcionais em lugar algum do texto-base.

Em 2016, a Campanha que neste momento se desenrola é ecumênica, elaborada não pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), mas pelo CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), instituição nascida em 1982, e que engloba, além da Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (existe uma outra no Brasil que é chamada apenas de Igreja Evangélica Luterana do Brasil, de viés mais conservador e que não participa do CONIC), a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e a Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia. O tema deste ano é o saneamento básico e traz dados interessantíssimos. O texto é tão bom que uso alguns parágrafos dele em minhas aulas de Gramática. De fácil entendimento, pode ser lido e discutido por quem não tenha sequer concluído o Ensino Fundamental mas tenha pleno domínio da leitura.

Mas a coisa não é tão pacífica como parece. Na página 5, relembram-se as três campanhas ecumênicas anteriores (2000, 2005 e 2010) e o quarto parágrafo pontifica:

“A motivação para essas Campanhas [ecumênicas] fundamentou-se na compreensão de que, ao centro da vivência ecumênica, está a fé em Jesus Cristo. Isso se deu, porque o movimento ecumênico está marcado pela ação e pelo desafio de construir uma Casa Comum (oikoumene) justa, sustentável e habitável para todos os seres vivos. Essa luta é profética, pois questiona as estruturas que causam e legitimam vários tipos de exclusão: econômica, ambiental, social, racial e étnica. São discriminações que fragilizam a dignidade de mulheres e homens.”

Nenhuma palavra sobre a opressão de gênero, pois, enquanto as igrejas luterana e anglicana do CONIC (silencio sobre a presbiteriana e a ortodoxa por nunca ter pisado em um de seus templos nem conhecer nenhum de seus adeptos) admitem a igualdade entre homens e mulheres, admitindo inclusive que mulheres cheguem ao sacerdócio, a Igreja Católica ainda acha que é necessário ter um pênis para se consagrar uma hóstia. Além disso, tenho dois caros amigos que são padres anglicanos e não veem problema algum no fato de o rapaz que toca o órgão em sua missa seja gay e vá para a igreja vestindo saia, o que causaria horror ao fã-clube do papa Francisco, aquele mesmo cardeal Bergoglio que acusou Cristina Kirchner de querer destruir a família ao reconhecer as uniões homoafetivas na Argentina. Então, para contemplar a CNBB, o texto tem que omitir-se quanto à opressão de gênero.

Tirando essas omissões deliberadas, gostei bastante do texto-base de 2016. Lendo-o, tomei conhecimento de que existe uma Lei Nacional de Saneamento Básico – Lei 11.455 de 5 de janeiro de 2007e uma meta federal para universalizar o saneamento básico até 2033 – para tanto seria necessário investir de 15 a 16 bilhões por ano, mas só estão sendo investidos 10 bilhões por ano.

Mas é uma pena que o texto-base, tão bem escrito e de tão fácil entendimento, seja estudado e discutido por tão poucos cristãos. Pois a maioria prefere esperar por milagres ao invés de agir para transformar a realidade. Se duvida do que digo, pergunte aos cristãos que você conhece, membros das igrejas citadas, quem leu o livrinho do texto-base!


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Edson Amaro De Souza

Edson Amaro perdeu toda e qualquer esperança de ser normal. Paga suas contas lecionando Língua Portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro, delicia-se praticando teatro de vez em quando, comete a imprudência de escrever versos, atreve-se a praticar a arte da tradução e, como se não bastasse, torce pelo Vasco da Gama. Gosta de tomar chá e semear dúvidas.

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