Ch de Dvidas

“Como se fazem os Santos”, ou “Um Vascaíno em Teresópolis”


Fui assistir ao filme “Irmã Dulce” ano passado. Admiro-a e muito. Um terço das consultas médicas em Salvador são realizadas nas Obras Sociais da Irmã Dulce. Ou seja: as coisas seriam mais difíceis para os pobres daquela cidade se ela não tivesse iniciado essa obra social questionando as rígidas regras do convento onde vivia para estar junto aos pobres da Bahia no distante ano de 1935. Num país em que as igrejas se multiplicam como cogumelos depois da chuva, fico pensando em como estaríamos se houvesse uma Irmã Dulce em cada uma delas. Porque certamente o dinheiro arrecadado com a venda de quinquilharias ungidas em rede nacional não parece estar sendo usado para o benefício dos pobres.

Irmã Dulce alcançou a condição de beata e pode alcançar a condição de santa. Mas você sabe como a Igreja chega à decisão de nomear alguém como santo? Tudo envolve um longo processo que termina com um problema lógico do qual não se fala porque é melhor para a Igreja que não seja percebido.

santo-antônio

É preciso que o candidato a santo tenha sido católico e esteja morto há pelo menos 5 anos. O bispo dá início ao processo nomeando um sacerdote como postulador da causa e tem que investigar indícios de santidade na vida do fiel falecido. Esse sacerdote prepara um dossiê que é entregue à Congregação para a Causa dos Santos, no Vaticano. Se a congregação der o “nihil obstat”, (“nada contra”), inicia-se um processo em seu favor na dita congregação e ele é nomeado “Servo de Deus”. Seus ossos são exumados e colocados numa igreja para a veneração dos fiéis. No Rio de Janeiro, por exemplo, os ossos da menina Odetinha (1930 – 1939) jazem agora na Basílica da Imaculada Conceição (bairro de Botafogo) e os do seminarista e surfista Gustavo Schaffer estão na Paróquia Nossa Senhora da Paz (bairro de Ipanema).

Sempre se faz um julgamento em que há a palavra da defesa (o postulante) e da acusação (o advogado do diabo) e ambos podem usar o depoimento de testemunhas que não precisam ser católicas. O jornalista ateu foi convidado a falar no Vaticano contra Madre Teresa de Calcutá e aceitou o convite.

Se o candidato a santo morreu como mártir, ou seja, teve morte violenta em defesa de princípios cristãos, ele é declarado beato imediatamente. É o caso de Maria Goretti, uma italiana assassinada aos 13 anos de idade por um vizinho mais velho com quem ela se recusara a ter relações sexuais. Se não foi esse o caso do candidato, é preciso “comprovar” um milagre para que ele seja declarado beato. E um segundo milagre para que ele seja declarado santo.

Mas como se “comprova” um milagre? Para afastar as dúvidas, o Vaticano quer a palavra de médicos. Um fiel se declara curado de uma doença por ter rezado pedindo esse favor ao candidato a santo. É preciso que ele mostre laudos que provam que esteve doente, outros que provem que está curado, perguntam-lhe se não pediu a ajuda de nenhum outro santo (imagina se surge dúvidas sobre qual santo fez o milagre) e pede-se a opinião de médicos, inclusive os médicos que cuidaram do ex-doente. Se eles não apresentarem uma explicação plausível para a cura, o milagre é reconhecido e o candidato elevado a beato ou santo.

Mas aí é que está o problema lógico. Alimenta-se aí o “deus das lacunas”. A religião tende a atribuir ao sobrenatural o que a ciência não consegue explicar. Mas não explica ainda. O que aconteceria se alguém se dispusesse a rever casos considerados milagrosos há 50, 80, 100 ou mais anos? Talvez os cientistas de hoje pudessem explicar o que os cientistas de décadas atrás não explicaram. E mesmo que realmente uma cura tenha acontecido, não há como provar que a causa dessa cura tenha sido mesmo a resposta à oração para um candidato a santo.

Carl Sagan, no livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios”, no capítulo 13, comenta os números relativos a pessoas que se declararam curadas de câncer após uma peregrinação ao santuário de Lourdes, na França. Cito as palavras de Sagan:

“(…) A Igreja católica romana rejeitou a autenticidade de um grande número de pretensas curas milagrosas, aceitando em quase um século e meio apenas 65 (de tumores, tuberculose, oftalmia, bronquite, paralisia e outras doenças, mas nenhuma regeneração de membro ou de medula espinhal rompida). Nos 65 casos, o número de mulheres superava o de homens numa proporção de dez para um. Portanto, a probabilidade de cura em Lourdes é de cerca de uma em 1 milhão; é mais ou menos tão provável ser curado em Lourdes quanto ganhar na loteria, ou morrer no acidente de um avião de linha regular e selecionado ao acaso – inclusive o que se destina a Lourdes.

A taxa de regressão espontânea de todos os cânceres, em conjunto, é estimada entre uma em 10 mil e uma em 100 mil. Se apenas 5% dos que vão a Lourdes ali estivessem para tratar de seus cânceres, deveria haver entre cinquenta e quinhentas curas “miraculosas” só de câncer. Como apenas três das 65 curas autenticadas são de câncer, a taxa de regressão espontânea em Lourdes parece ser inferior à que existiria se as vítimas tivessem simplesmente ficado em casa.”

(SAGAN, Carl. O mundo assombrados pelos demônios. Tradução Rosaura Eichemberg. 8ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, págs. 268 e 269.)

Ou seja: não é necessário ir a Lourdes para que um câncer regrida. Há casos de cânceres que regrediram sem qualquer peregrinação.

petropolisVoltando aos julgamentos do Vaticano e o seu problema lógico: não está clara a relação de causa e efeito. Sei, por exemplo, que uma vela foi acesa porque eu risquei um fósforo e aproximei sua chama do pavio da vela. A causa do acendimento da vela foi a aproximação da chama do fósforo realizada por mim. Por outro lado, quando, em 2009, o Vasco da Gama estava na segunda divisão do campeonato brasileiro e eu vesti uma camisa do Vasco em um domingo no qual visitei a aprazível cidade de Teresópolis e entrei em um táxi cujo motorista também era vascaíno, o Vasco venceu naquele domingo e foi campeão da série B no final do ano. Mas se eu for hoje a Teresópolis vestindo uma camisa do Vasco e valer-me dos serviços de um taxista vascaíno, isso não implicará no sucesso do gigante da Colina. Não há relação entre passar um domingo aprazível em Terê e a vitória do time cruz-maltino. Da mesma forma, se o governador de São Paulo fizer uma novena pedindo chuva para o sistema Cantareira e chover no décimo dia onde necessário, seria lógico estabelecer uma relação de causa e efeito entre a novena e a chuva?

O Vaticano, ao menos, tem o bom senso de rejeitar a maior parte dos alegados milagres, como o reconheceu Carl Sagan, que se esforçava para ser sincero em tudo que escrevia. O mesmo cuidado não têm os pastores da TV brasileira. Dia desses, havia uma fila de fiéis alegando em rede nacional todo o tipo de “curas”. Houve mesmo uma velhinha que agradecia por ter conseguido evacuar após vários dias de intestino preso. Talvez ela tenha comido uma salada de alface – o que faz toda a diferença nesses casos – mas preferiu atribuir a libertação do intestino à intervenção divina!


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Edson Amaro De Souza

Edson Amaro perdeu toda e qualquer esperança de ser normal. Paga suas contas lecionando Língua Portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro, delicia-se praticando teatro de vez em quando, comete a imprudência de escrever versos, atreve-se a praticar a arte da tradução e, como se não bastasse, torce pelo Vasco da Gama. Gosta de tomar chá e semear dúvidas.

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12 respostas

  1. Vascaíno se faz na série B.

  2. mandaram o caso do Vasco pro Expedito e ele alegou que não era com ele, repassaria pra uma instância superior.

  3. O último parágrafo do texto, no meu entendimento, elucida e deixa claro quem são os sem critérios atuantes diuturnamente na mídia em geral, em franca expansão e com previsões de maioria em 2020. Tenho certeza que se Sagan estivesse vivo e escrevesse o excelente livro “O mundo assombrado pelos demônios” neste ano de 2015, com certeza daria ênfase e destaque aos citados no último parágrafo da vossa reportagem, e deixaria claro que não devemos nos preocupar com a ICAR, em franca estagnação e retração. E entendo que os segmentos medievais que estão se infiltrando em todos os setores da sociedade terão a pretensão de ditar normas da Idade do Bronze, e se não houver mobilização da sociedade serão capazes de tornar este País um inferno maior que o dos tempos da Inquisição. Lembro que houve Inquisição também nos meios Protestantes. ———- Segue o CtrlC+CtrlV do final de texto que citei no início, de autoria do Edson Amaro de Souza (apenas reproduzo para frisar) : — “O Vaticano, ao menos, tem o bom senso de rejeitar a maior parte dos alegados milagres, como o reconheceu Carl Sagan, que se esforçava para ser sincero em tudo que escrevia. O mesmo cuidado não têm os pastores da TV brasileira. Dia desses, havia uma fila de fiéis alegando em rede nacional todo o tipo de “curas”. Houve mesmo uma velhinha que agradecia por ter conseguido evacuar após vários dias de intestino preso. Talvez ela tenha comido uma salada de alface – o que faz toda a diferença nesses casos – mas preferiu atribuir a libertação do intestino à intervenção divina! “.

  4. Alan Luiz disse:

    Houve mesmo uma velhinha que agradecia por ter conseguido evacuar após vários dias de intestino preso.(eu vi também)
    Tadinha, deve ter passado a vida toda sendo doutrinada a acreditar no sobrenatural. Infelizmente somos doutrinados desde criança a acreditar em algo sobrenatural, não somos ensinados a questionar.
    Temos essa necessidade, de nos sentirmos especiais no mundo e que temos um ser superior que “olha por nós”, faz milagres e etc…
    Nem as escolas não nos ensinam a questionar, não tocam no assunto “evolução das espécies”, o único lugar que muitas pessoas encontram “explicações” é na bíblia, corão e tudo mais.
    Dessa forma a gente vai vivendo na terra das crendices, onde tudo pode acontecer, e se não tiver explicação,a explicação é Deus.
    Infelizmente as informações não chegam nas pessoas..

  5. Queridos, cochilei ao escrever esse artigo. O nome do jornalista ateu que depôs contra Madre Teresa no Vaticano era Christopher Hitchen, o autor de “Deus Não É Grande”.

  6. eu nem pretendia ler o texto,mas quando vi o nome da cidade na qual eu moro,fui obrigado a ler. kkkkkkkkk

    • Que bom que chamou a atenção de alguém de Teresópolis.
      Eu sempre conto esse caso quando exemplifico o fenômeno religioso: o fato de alguém rezar e conseguir emprego não significa que o emprego foi uma resposta à prece, como o fato de eu ter ido a Terê com a camisa do Vasco não provocou sua elevação à série A.
      Aliás, precisamos falar mais das cidades interioranas.
      E eu gosto mais da Região Serrana que da Região Metropolitana.

  7. João Ramos disse:

    Edson, bom texto, porém a foto é da Catedral São Pedro de Alcântara, em “Petrópolis”, não em Teresópolis. rsrsrs

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