Ch de Dvidas

Do que os intolerantes têm medo?


Há quem chame a Psicanálise de “pseudociência”. Eu me confesso admirador de Freud e de Jung e acho que a Psicanálise é um ótimo instrumento para analisarmos certos comportamentos, discursos e obras de arte. Quer um exemplo? No campo da Literatura, que autores negros, ou de ascendência ameríndia, indiana ou árabe escreveu algo relevante para a ficção científica? A ficção científica, embora tenha alguns encabulados representantes na América Latina (Guimarães Rosa e Dinah Silveira de Queiroz deram uns tímidos passos nessa seara, por exemplo) é uma manifestação típica de países industrializados do Hemisfério Norte – de nações que adoram a tecnologia que desenvolveram como os hebreus do deserto adoravam o bezerro de ouro: tão logo criaram o ídolo disseram “Este é o deus que nos tirou do Egito”, atribuindo à estátua recém-criada a autoria de um episódio passado – e temem perder o controle sobre essa tecnologia que os fascina (o que não deixa de ter uma ponta de verdade, uma vez que as pessoas se falam menos olhos nos olhos e mais por dispositivos eletrônicos, que existem para disfarçar o pouco tempo livre que nos resta para cultivar os relacionamentos pessoais – são como os instrumentos que nos deixam adormecidos sem enxergar a Matrix em que vivemos imersos); países que se industrializaram explorando povos tecnologicamente menos desenvolvidos: basta ver a rapina que os europeus fizeram nas colônias da América, África, Ásia e Oceania. Os extraterrestres que invadem e saqueiam a Terra são a projeção da culpa desses povos desenvolvidos que temem que uma raça alienígena venha fazer com eles o que fizeram aos povos nativos séculos por eles invadidos.

Fui ao cinema e vi o anúncio do filme “Deus Não Está Morto 2”. Confesso que pensei em ver o primeiro, mas quando soube que o deputado Marco Feliciano, porta-voz maior do atraso e da ignorância, o elogiou, desisti. Não valia a pena. Teólogos que têm uma respeitável formação humanística e dialogam com a diversidade, como Frei Betto e Leonardo Boff, pelo que sei, não disseram uma palavra sobre o filme. Parece que o público do filme era composto por aquele pessoal que acredita na Bíblia sem nunca ter lido dela mais que as migalhas jogadas nas igrejas mais conservadoras e mantém distância das bibliotecas públicas.

No trailer, uma onda de ateísmo se apodera das instituições legislativas, judiciárias e educacionais. Uma professora, aparentemente lecionando Filosofia, fala da não-violência como um compromisso assumido perante elevados valores morais. Uma aluna cita a frase de Cristo sobre amar os inimigos, a professora diz que o papo é por aí e um ateu a denuncia e ela tem que responder perante um tribunal por não desautorizar a aluna a citar Cristo.

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Cena do filme “O Vento Será Tua Herança” (1960): o advogado de defesa Henry Drummond (Spencer Tracy, à esq.) enfrenta o fundamentalista Matthew Brady (Fredric March), da acusação, na dramatização do julgamento real de um professor acusado de desrespeitar uma lei proibindo o ensino da evolução.

Tal como os descendentes dos colonizadores produzem uma literatura que expressa o medo de serem colonizados, os fundamentalistas estão produzindo filmes que expressam o medo de serem tratados com a mesma intolerância com a qual têm tratado os que pensam diferente. Vamos lembrar que, em 1925, um professor nos EUA foi processado por ensinar a evolução, o que inspirou um filme clássico: “O Vento Será Tua Herança” (“Inherit The Wind”) – filme de 1960, que teve um remake em 1999 (a versão original está disponível no Netflix neste momento; digitem o título em Inglês, ótima dica para o carnaval). Neste momento, querem enfiar nas aulas de Biologia o “design inteligente”, um disfarce para o Criacionismo que todas as instituições científicas rejeitam. Exigem que as escolas façam de conta que toda a humanidade é heterossexual e cisgênera, para calar as vozes dos LGBTs – assim eles ficam mais à vontade para nos chamar de doentes, abominações, endemoniados e outros termos carinhosos dessa espécie, sem que haja o contraditório da Ciência para nos defender.

Eu, professor de Língua Portuguesa, nunca tive problemas quando usei poemas de autores cristãos como “Sete anos de pastor Jacó servia”, de Camões, ou “Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado”, de Gregório de Mattos, mas quando usei textos de Jorge Amado e de Alberto da Costa e Silva em sala de aula que falavam de candomblé, os fundamentalistas ou foram à direção da escola pedir minha cabeça, ou se recusaram a fazer o questionário, ou me insultaram pelas costas, gritando ofensas quando eu saía ou entregaram a prova com uma única frase: “MACUMBA É LIXO”.

Deus Não É Grande 2” expressa o medo dos fundamentalistas de serem tratados da mesma forma como nos trataram no passado e gostariam de nos tratar ainda. E, caso os ateus tivessem, como no filme, a faca e o queijo nas mãos e quisessem oprimi-los, haveria ainda um documento para protegê-los da ditadura ateia: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esses mesmos Direitos Humanos contra os quais o fundamentalismo age todos os dias.

Valeu, tio Freud!


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Edson Amaro De Souza

Edson Amaro perdeu toda e qualquer esperança de ser normal. Paga suas contas lecionando Língua Portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro, delicia-se praticando teatro de vez em quando, comete a imprudência de escrever versos, atreve-se a praticar a arte da tradução e, como se não bastasse, torce pelo Vasco da Gama. Gosta de tomar chá e semear dúvidas.

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14 respostas

  1. Mais um motivo pra investirmos PESADO em Educação Básica e Alfabetização Científica da população… PRINCIPALMENTE aquelas mais desassistidas , pois é nelas que esses ditos “defensores da virtude” se apoiam para impor suas “verdades”.

  2. E por curiosidade, como você, provavelmente um cidadão que deve usar a razão e a curiosidade para questionar dogmas e verdades absolutas além de tentar entender as ciências, se classificaria? Criacionista, agnóstico, ateu ou outra forma (se é que existe)?

  3. Página sobre Filosofia e debate livre de ideias. Fortalece lá.

  4. <~~Curtam nossa página! somos OPOSIÇÃO ao Design Inteligente. Defendemos a Teoria da Evolução. (y)

  5. Nossa! Estou louca para assistir a este filme!

  6. Lamentável, fundamentalistas que foram criados embaixo de uma bíblia escrita há 2000 anos não conseguem enxergar que a sua religião assim como as outras fazem parte apenas de um conjunto de crenças sem fundamento que se incorporou na sociedade e deve ser apenas estudada como literatura, nada mais que isso, jamais como verdade científica.

  7. http://ceticismo.net/ciencia-tecnologia/freud-nao-explica-quase-nada/
    Pode haver algo útil na pseudociência psicanálise, mas é semelhante a “algo útil” na pseudociência Astrologia como necessitaram e necessitam estudar as posições dos astros, etc útreis a Astronomia, o mesmo para pseudociência Alquimia com instrumentação úteis à Química…

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