Humanismo

Rótulos sexuais


A necessidade humana de fazer classificações é antiga. Tão antiga quanto nossa capacidade de raciocinar. Ela nos facilita a compreender o mundo, a observar e compreender como funcionam vários dos aspectos naturais e, com a sociedade moderna cada vez mais consolidada, classificar-nos[1]. Mas isto acabou por criar normas onde as pessoas fossem os alvos mais claros destas demarcações por seus comportamentos, ideias, escolhas, condições e tantas outras variações que teremos dificuldade de enumerá-las. Temos assim determinados arquétipos que deixam de vislumbrar a plenitude da formação elástica das nossas capacidades reais.

No dia a dia, quando vemos uma classificação com intuitos mais degenerativos e que tem por base uma locação de valores morais e sociais, temos então a rotulação das pessoas. Rotulamos das mais variadas maneiras, com apelidos, com discriminações, com ações visando pessoas especificas em função de suas diferenças, o que nos leva ao racismo, machismo, homofobia, misantropia, misoginia, xenofobia. O rótulo serve para que se separem as pessoas mediante aspectos provindos de um grupo dominador, um grupo que em algum momento histórico se sobrepôs por quaisquer motivos que sejam e procurou manter esta sobreposição, e rotular é o meio mais eficiente de manter as mentes das pessoas sob esta sobreposição, tanto dos rotuladores quanto dos rotulados.

O que temos então quando aqueles que procuram se desprender de determinados rótulos e viverem como seus próprios instintos e desejos simplesmente acabam por manter alguns rótulos e criarem outros? Eles fazem o que seus grupos opressores lhes fazem e que eles tanto são contra. Um destes grupos são os intitulados LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).

O próprio conceito de se definir alguém pelas suas atitudes sexuais já é temeroso, visto que a atitude sexual provém do indivíduo para com outras pessoas, e isto não deveria ou não poderia ter de forma alguma uma importância ao ponto de se alijar alguém de outras situações da vivência social. Assim, assimilamos rótulos como forma de nos proporcionar um grito de liberdade, dizendo: “Dizem sermos ‘isso’! Pois somos, e daí?” Sim, isto é válido. Cria uma surpresa na sociedade castradora que os faz pensar sobre o assunto. Então, portanto, temos os opressores sendo confrontados pelos oprimidos. Mas não há lógica nos oprimidos criarem mais oprimidos dentro de seu próprio grupo e passando alguns a serem opressores.

10805310_756312081127190_1429491546_nVários daqueles que se veem como gays e lésbicas possuem o costume de discriminar bissexuais como pessoas “indefinidas”, chegando às raias de demonstrações de repulsa por estas admirarem e sentirem prazer com ambos os sexos. Ocorre também com as pessoas intituladas pansexuais, que tem os mesmos desejos pelos mais variados gêneros, homens, mulheres, trans e demais. E sim, há o preconceito vindo de todas as partes, para com heterossexuais que se sentem à vontade para explorar seus desejos independentemente do gênero. Muitos homens e mulheres adoram vivenciar a plenitude de seus corpos e a beleza do prazer no ato sexual, mesmo que sua condição seja o sexo oposto. E isto acaba por ser taxado de algo errado ou irregular. Tais imposições em formas de rótulos são tão abrangentes e tão disseminadas que até quem se vê na condição da experimentação acima citada carrega preceitos discriminatórios, como é possível ver no novo grupo autointitulado G0y, grupo de homens heterossexuais que admitem a atração por outro homem, mas com várias limitações que nitidamente são imposições de normas dominantes. O lema que aparece no seu site é “Amor, confiança, respeito, discrição e masculinidade” (como se todos estes aspectos fossem imprescindíveis e exclusividade deste ou de qualquer outro grupo) além de um trecho de seu site dizer que “G0ys são a salvação do ‘homem de verdade’ e, por isso, não permitem qualquer associação com imagens e clichês do mundo gay”[2].

O desejo, a vontade, o tesão não devem possuir reprimendas, e estas imposições são normas que os grupos dominantes – hétero-branco-macho-normativo – promulgam por milênios e mantém rédeas ao teor humano de se ser um ser humano. Qual a lógica de se deixar que o opressor diga como o oprimido deve mostrar sua indignação? Não há argumentação válida para isso. Deixar que rótulos nos promovam é aceitar normas para nós, as quais queremos combater.

Tal visão provém de uma normatização do grupo maior, aquele que detém o poder de manter o status quo e quer mantê-lo exatamente como sua condição e sua posição mandam. Eles querem rotular, e o conceito de rotular passa para os rotulados, que querem usar do mesmo artifício para manter seu próprio status. Isto possivelmente dê a sensação de poder que muitos membros de grupos subjugados querem possuir. E esta briga por poder acaba desfazendo a essência da luta pela igualdade, por toda a igualdade.

Comportamentos assim acabam por gerar um distanciamento entre os membros de grupos que lutam pelas melhorias das condições de todos, com ideias que em geral são ligeiramente diferentes, mas que os rótulos estereotipados incorporados são realmente os que fazem diferenciar-se. Esta diferenciação é exatamente o que o opressor quer, desfazer o valor das lutas e a manter o que aí está. E é clara e contínua, não apenas na comunidade LGBTTT, mas em todas as comunidades reprimidas que lutam pela igualdade e pelo reconhecimento de seus direitos como verdadeiros cidadãos, integrantes desta grande comunidade humana global.

Nós, como seres humanos, jamais ‘seremos’ qualquer coisa, nós ‘estamos’. E este ‘estamos’ se dirige às necessidades e desejos, vontades que possuímos por sermos uma espécie tão plural e elástica em nossas concepções e formação. O mais importante em todos os grupos existentes são as relações humanas, as relações que temos entre todos nós. E a dignidade que não deveria ser conquistada, pois ela é inata, nasce conosco. Rotular é a maneira mais utilizada de nos dizer que quem nos dá a dignidade é quem detém o poder.

 

[1] Classificação dos seres vivos: Como e por que classificá-los? – UOL Educação (13/10/2005)

[2] Site oficial G0ys.org

 


Este texto, como os das demais colunas opinativas do portal, é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente o ponto de vista dos demais colunistas ou do papodeprimata.com.br.


Henrique Dal Bo Campanilli

Henrique é poeta, colunista, aprendiz de cachaceiro e de gaita; torce pela humanidade, apesar desta muitas vezes não lhe dar motivos para tal.

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