Muhammad ibn Abd al Wahhab dizia que havia três objetivos para o governo islâmico e sua sociedade: “crer em Allah, ordenar o bom comportamento e proibir o ilícito”.
Para falarmos sobre o Wahhabismo (ou “salafismo”) é muito importante que se faça uma pequena passagem pela história da Arábia Saudita, o berço do fundamentalismo islâmico, já que que desde a criação do país, o sistema político do país tem sido o de uma monarquia absoluta teocrática.
No século XVIII, o Império Otomano controlava grande parte da Península Arábica, mas permitia peregrinações nas cidades sagradas de Meca e Medina. Foi um tempo de insegurança pois, como o Império Otomano era extremamente tolerante com as tradições e crenças de seus povos conquistados, aquela região era palco de conflitos religiosos. Tanto a Igreja Ortodoxa Cristã, das terras Bizantinas, como os judeus perseguidos pelos cristãos na penísula arábica, encontraram refúgio nas terras Otomanas.
Com essa espécie de “Islã liberal”, os otomanos afrontaram várias tribos beduínas tradicionais. Neste ambiente de discórdia, um líder deu voz aos descontentes: Muhammad ibn Abd al-Wahhab, que viveu de 1703 a 1792, foi um erudito islâmico do Najd (região central da península arábica coberta por dunas). Os ensinamentos desse reformador árabe deram origem ao wahhabismo (termo cunhado por seus opositores e que nunca foi usado por Muhammad ibn al-Wahhab’Abd ou por nenhum dos participantes do movimento).
Ao fazer um pacto com o emir Muhammad bin Saud, fundador do império saudita, Wahhab ajudou a estabelecer o Primeiro Estado Saudita e iniciou uma aliança de partilha de poder dinástico entre as suas famílias, que continua até os dias atuais no Reino da Arábia Saudita. Desse modo, os descendentes de Ibn’Abd al-Wahhab, denominados os Al ash-Sheikh, historicamente levaram os ulemás (sábios ou doutores da lei, entre os árabes e turcos) ao Estado Arábico enquanto dominavam as instituições clericais do país.
Wahhab usou de diversas justificativas baseadas no antigo império para fomentar suas ideias fundamentalistas, acusou os otomanos de mudarem o Islã original e o distorcerem com o uso de elementos nacionais, como o culto popular de santos. Conforme os seguidores de Wahhab pregavam, os muçulmanos precisariam retornar ao que chamavam de “estado puro”. A mística wahhabita está associada ao combate à idolatria, pois até então, devido à visão tolerante Otomana, era comum encontrar veneração aos santos e manifestações de piedade, como a visitação a mausoléus e peregrinações a lugares sagrados. Para o reformador, a identidade muçulmana do fiel não estava pautada na profissão de fé.
No entanto, muitos críticos acreditam que o que é defendido por esse grupo como “Islã original” é na verdade algo construído, que não corresponde ao início da história do Islã. Naturalmente, Wahhab reagia ao que se apresentava na época e, assim como ocorre a todo fundamentalista e sua visão “universalizadora” de mundo, era contra todo tipo de interpretação teológica, de tal forma que as escrituras e os ensinamentos teológicos deveriam ser seguidos de forma literal, conforme foram apresentados.
Como conceito, o wahhabismo é um movimento religioso ou seita do islamismo sunita geralmente descrito como “ortodoxo”, “ultraconservador”, “extremista”, “austero”, “fundamentalista” e “puritano”. A Chahada (“testemunho de fé” islâmica) é a sua base. Através dela, fazem a defesa do monoteísmo e da unicidade da divindade, que é Allah. O Corão e a Sunna (escritos baseados na prática e na conduta de Mohamed, o Profeta, em vida) são a sua ideologia, por assim dizer. Os wahhabita consideravam que nem de uma constituição o país precisaria!
O wahhabismo é acusado de ser “uma fonte de terrorismo global” e causador de desunião na comunidade muçulmana, ao rotular os muçulmanos não-wahhabistas como apóstatas (takfir), abrindo assim o caminho para o derramamento de sangue. O movimento também foi criticado pela destruição de mazaars, mausoléus e outros edifícios e artefatos históricos de muçulmanos e não-muçulmanos. Os “limites” que determinam o wahhabismo têm sido classificados como “difíceis de identificar”, mas no uso contemporâneo, os termos “wahhabistas” e “salafistas” são muitas vezes usados como sinônimos e considerados um movimento com diferentes raízes, que se fundiram a partir dos anos 1960. O wahhabismo também tem sido chamado de “uma orientação particular dentro do salafismo”, ou um braço saudita ultraconservador do salafismo.
Muhammad ibn Abd al Wahhab dizia que havia três objetivos para o governo islâmico e sua sociedade: “crer em Allah, ordenar o bom comportamento e proibir o ilícito”. Estes princípios foram realçados nos dois séculos seguintes perante a sociedade islâmica. Com isto, foram criados os “mutaween“, uma espécie de incentivadores morais da sociedade, estes, também servindo como missionários e como “ministros da religião”, que pregam nas mesquitas ás sexta-feiras. Além de obrigarem os homens à prática da oração pública, também são responsáveis pelo fechamento das lojas nos horários das orações, pela busca pelo que consideram infrações da moralidade pública, como drogas (incluindo o álcool), música, dança, cabelo longo para os homens ou cabeças descobertas para as mulheres, além de ditarem a forma de todos se vestirem.
Todavia, o wahhabismo não é um movimento homogêneo e acaba se tornando motivo de vários debates entre seus teóricos. Uma das discussões mais fortes, por exemplo, é sobre as circunstâncias do uso permitido da violência ou a aplicação de castigos físicos, que leva algumas diferenças significativas no comportamento e na orientação dos adeptos em diferentes países islâmicos.
Conjecturas
O Islã como religião monoteísta é hoje a que mais cresce em todo o mundo. Enquanto outras denominações religiosas de grande porte diminuem suas taxas de crescimento, o Islã é que apresenta o maior índice de adeptos e conversões, ficando atrás apenas do cristianismo, que, segundo The World Factbook (publicação anual da CIA, com informações de base estilo almanaque sobre os países do mundo), tem 28% da população mundial como fiéis, seguido do islamismo, com 22%, Hinduísmo com 15% e Budismo com 8, 5 %.
É sempre interessante salientar os cuidados que se deve tomar ao falar, debater e julgar o Oriente com os olhos do Ocidente. O fundamentalismo nunca foi exclusividade árabe, e entre os muçulmanos este tipo de manifestação apareceu somente no início do século XX. Está claro que, contrariando a impressão de muitos, tal movimento fundamentalista islâmico não possui o “repúdio ao Ocidente” e o “combate aos Estados Unidos” em sua gênese. Ao contrário, o fundamentalismo islâmico nasceu em resposta de sua própria política. Basta reconhecer que grupos como o Al-Qaeda têm sua origem a partir da invasão soviética ao Afeganistão, na qual vários lutadores não afegãos, sem vinculo nacionalista, aderiram à causa em comum, unindo-se ao movimento anti-russo formado pelos Estados Unidos e Paquistão.Foi nesse contexto que Osama Bin Laden, membro de uma abastada e proeminente família nobre saudita, liderou um grupo informal que se tornou uma grande agência de levantamento de fundos e recrutamento para a causa afegã. Assim surgiu o Al-Qaeda, no seio territorial dessa forma de fundamentalismo – o reino da Arábia Saudita, desde a aliança entre al-Wahhab e bin Saud, tão refratária a outras leituras do Islã que o grupo posicionava-se fortemente contra o regime de Saddam Hussein, a quem acusavam de ter tornado o Iraque um Estado laico.
Como os dados acima mostram, o fundamentalismo islâmico não é unificado ou monolítico. Se todo muçulmano fosse fundamentalista, o mundo seria bem diferente do que é hoje e certamente um lugar bem mais difícil de viver. Quando há um caso de violência extrema no Oriente Médio do qual tomamos conhecimento, dificilmente o tratamos como um desequilíbrio individual, produto da mente doentia de um individuo, e procuramos uma explicação que passa por matrizes de fundo coletivo, sociológico, civilizacional e religioso, desembocando uma generalização absoluta. Por quê?
Por que somos ocidentais! Mata-se no oriente médio em nome da fé, mas também mata-se no ocidente pelo mesmo motivo. A diferença é que, ao que parece, nosso “terrorismo” (que nem ao menos é assim chamado) é de certa forma mais “simpático”, no máximo uma ação de um desequilibrado, quando o terrorismo do outro é fanatismo endêmico.
Por isso devemos ter a máximo atenção ao analisar o islamismo e suas vertentes de maneira a não fomentar o preconceito e a islamofobia (que é o sentimento de ódio ou de repúdio em relação aos muçulmanos e ao Islamismo em geral), fenômeno que cresceu sensivelmente nos EUA, Europa, Canadá e Israel, principalmente depois dos atentados do 11 de setembro.
Com efeito, a origem histórica do fundamentalismo contemporâneo, ao encontrar-se no universo religioso, não parte do distante alheio Oriente Islâmico; ao contrário, inicia-se no protestantismo, entre os conservadores teólogos presbiterianos no Seminário Teológico de Princeton, no final do século XIX, logo espalhando-se também entre conservadores batistas. A abrangência desse fenômeno no cenário atual, entretanto, ultrapassa os limites religiosos, ocupando espaços na economia e política, já que é associada ao fanatismo – uma única visão de mundo, um único ponto de vista sobre determinado tema, uma opinião globalizada e “verdadeira”, carregando consigo um traço claramente ideológico e na sua grande maioria violento.
Há que se pensar, pois, no que está em jogo quando acusamos “o outro”: será que o problema é mesmo o fundamentalismo em si, ou o fato deste vir “do outro”? Enquanto acharmos simplesmente que o maior problema é uma ação extremista ser perpetrada por um muçulmano, estaremos contribuindo para que a questão não se resolva, quando não alimentando nossos próprios extremismos…
“Uma hora de reflexão tem mais valor que sessenta anos de adoração.”
— Ibn Ata Illah
“Crer em Allah, ordenar o bom comportamento e proibir o ilícito”. Pelo visto, o que mais tem no Brasil ultimamente é wahhabista. Haja visto a bancada evangélica!!